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sábado, 18 de maio de 2024

On the Road, o livro. Resenha

Entre o final dos anos 1930 e os meados dos anos 1950, mais ou menos, o grupo de William Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouac criou um movimento que pretendia abolir certos formalismos e “pudores” consagrados pela literatura americana da época. Havia no movimento beat um senso crítico e libertário que procurava “oxigenar” o meio intelectual da época através de novas vivências e experimentos literários além de certa dose de misticismo - tudo isso regado com muito álcool, sexo, drogas e jazz, ingredientes muito apreciados neste universo criativo e comportamental. O poema “Howl” (Uivo) de Allen Ginsberg e o livro “On The Road” de Jack Kerouac tornaram-se símbolos desta geração. “On The Road” (L&PM, 2021) é escrito como um livro de memórias; é uma espécie de coleção de encontros, curtições, reflexões e frustrações. 
O livro nos remete ao mundo dos boêmios amantes do jazz, dos hipsters, okies e outros tipos que perambulavam pelos dos Estados Unidos de costa a costa em busca de trabalho, curtição ou, simplesmente, de algo com o que se ocupar nas décadas de 1940 e 1950.

A história vai encadeando os eventos de uma forma que parece espontânea, como num diário e, apesar da narrativa não ser sempre linear, a leitura flui muito bem, seja nas resenhas sobre as peripécias de cada aventura, na descrição das paisagens avistadas da estrada ou nos relatos verborrágicos dos febris concertos de jazz nos recônditos muquifos de San Francisco. Além disto, o fato sabermos que é uma história vivida, com personagens reais nomeados por pseudônimos, torna tudo mais atraente.

A obra está dividida em cinco partes que cobrem quatro grandes jornadas e uma espécie de epílogo. As jornadas sempre começam na descolorida New York e têm como meta a ensolarada e vibrante Califórnia -exceto a última, rumo ao insólito e ancestral México. Denver no Colorado (torrão de Dean) é sempre uma parada obrigatória no meio do caminho, uma espécie de “pouso” onde todos se encontram.

As jornadas relatadas no livro nos contam parte da vida Sal Paradise (o próprio Kerouac), o seu vazio existencial e a sua intensa relação com Dean Moriarty, pseudônimo de Neal Cassidy no livro. Aliás, boa parte da obra de Kerouac tem Neal Cassidy como referência.

Sal, um ex-combatente que vive com a tia em Paterson/New Jersey, tenta firmar-se como escritor enquanto busca um sentido para a vida. Não ficar, sair e explorar, lhe parece a melhor maneira de empreender esta busca.


Dean Moriarty, o impávido condutor das grandes aventuras, é um hipster sedutor, persuasivo e inconsequente; é também uma vida pulsante, intensa, um elemento de imprevisibilidade na vida de Sal.

Dean acredita que o seu destino é viajar e deslindar os segredos da vida. “Escolado na estrada crua da noite, Dean veio ao mundo para observá-lo” (p. 337). É o personagem mais interessante e controverso do livro; fica-se com a sensação de que ele percebe coisas sobre a realidade que os outros, comuns, não compreendem.

Sal e Dean, confiam que a aventura lhes reserva algo especial no final da estrada. Apesar de livres e irreverentes, sentem-se, de alguma forma, submetidos aos desígnios de Deus.

Porém, enquanto Sal vive as suas aventuras sem laços familiares muito demandantes, Dean divide-se entre uma intensa vida boêmia e alguns relacionamentos do tipo “papai e mamãe”, deixando pelo caminho um rastro cada vez mais profundo de expectativas não cumpridas. No entanto, ele, egocêntrico, não parece viver qualquer dilema, não tem remorsos. Foi um marginal abandonado pelo pai; formou-se na rua, no reformatório e na prisão; agora, apenas tenta curtir ao máximo o que a vida lhe oferece sem expectativas muito elevadas; foca-se no que ela é e não no que poderia ter sido.

Sal é o oposto. Tem uma família que lhe dá algum suporte; conseguiu, na condição de ex-combatente, uma bolsa de estudos para a universidade e constrói de forma convincente uma carreira de escritor. Porém, sempre foge para a estrada a procura de algo que, na verdade, não está lá; procura por uma revelação, a joia que preencherá o buraco cavado pelo tédio e pela frustração: “[...] na estrada, em algum lugar, a pérola me seria ofertada” (p. 28).

Ao terminar o livro, fiquei com a sensação de que o genuíno “espírito beat”, que ainda habita o imaginário romântico de muitas gerações, está na mistura dos traços destes dois “tipos”. Porém, se eu pudesse perguntar a um deles sobre o significado desta grande jornada que é a vida, perguntaria ao Dean.