Recomendo começar a leitura desta edição (Biblioteca Azul, 2016) pelo prefácio do Velosão, que destaca -e o faz muito bem- aspectos relevantes da obra. Destaca, por exemplo, a forma peculiar com que Mãe escreve, banindo as maiúsculas do texto e deixando exclamações e interrogações à interpretação do leitor. Fala também sobre as referências do livro à história política e social de Portugal, que permeiam toda a história -da opressão política da ditadura de Salazar nos anos 70 ao sentimento de estranheza dos portugueses no seio da atual Comunidade Europeia-, tudo isto dentro de uma “fábula de amor sincero e melancolia histórica (e biológica) que move este livro”, diz Caetano.
Após a morte da
esposa, o personagem principal, António Jorge da Silva, é colocado pelos filhos
em uma casa de repouso. Tolhido de decidir sobre a própria vida e extremamente
inconformado com a perda da companheira de quarenta e oito anos de casamento, António
chega ao “Lar da Feliz Idade” casmurro e agressivo. Aos oitenta e poucos anos,
a desilusão com a vida e o vislumbre da implacável decrepitude da velhice o
fazem desejar a morte como uma forma de justiça a livrá-lo de um legado
humilhante.
Com o tempo, o sr. Silva (assim António era chamado no asilo) vai se amansando, faz algumas amizades interessantes, acostuma-se à rotina, empreende algumas traquinadas com seus companheiros de Feliz Idade e, nisto tudo, descobre até alguns deleites. As saudades da esposa Laura não passam, mas a revolta dá lugar, gradualmente, à melancolia e à fria constatação de que a vida vai mesmo se esfarelando dia após dia. Sobre isto, na página 139, o seu amigo Esteves diz o seguinte:
digam-me se não é a violência na terceira idade. isto é violência na terceira idade. sabem por quê, porque o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura. [...] ser-se velho é viver contra o corpo.
Neste compasso,
António segue remoendo a sua existência e as suas escolhas, anotando culpas e
desculpas; aos poucos, vai se enternecendo e também se fragilizando. Assim,
segue até o fim da história.
Com muita
“metafísica” e um senso de humor afiado e direto, Mãe nos declama a sua poesia
da vida e faz com que nos aninhemos nesta história até quase esquecermos da
desgraça que é envelhecer, até normalizarmos e acharmos razoavelmente aprazível
aquela realidade triste. Mãe também coloca na boca dos seus personagens um tom
de desgosto e decepção consigo mesmos, como povo, ao refletirem sobre o seu
passado fascista nos tempos de Salazar. É, ainda, forte o sentimento de
inferioridade, percebe-se que eles se sentem como se fossem filhos alongados,
adotados pelo primeiro mundo, mas obrigados a viver num país de terceiro mundo,
invejando o vizinho espanhol -as suas casas, os seus salários e o seu
território mais imponente.
O livro não quer
falar da descoberta de “[...] uma nova possibilidade de existência. Como a flor
que fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio [...]", como se lê na
contracapa desta edição. O livro diz mais sobre o encontrar aliviado de
outra mão trêmula no meio da escuridão fria, sobre o alento que é
descobrir-se acompanhado e amparado na beira do abismo. O autor não fala de
esperança, fala de angústia, finitude e consolo.
Quanto ao estilo de
Valter Hugo Mãe escrever (estilo inaugurado por José Saramago), devo dizer que,
a mim, não trouxe acréscimos quanto à fluência do texto, tão propalada por
Caetano Veloso no seu prefácio, ao contrário. Eu gosto mesmo é de ser interrompido
por um novo parágrafo que, de preferência, comece com uma letra maiúscula;
gosto de ver travessões nos diálogos e sinais de exclamação e interrogação
dando “entonação” a eles. Algumas vezes tive que voltar linhas atrás para
entender quem estava falando e se estava perguntando ou simplesmente afirmando,
mas acabei me acostumando. De resto, o livro é ótimo!
