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terça-feira, 22 de outubro de 2024

"Deus Existe?", o livro. Resenha

“Deus Existe?” (Planeta, 2008) transcreve, no seu núcleo, o debate entre o então Cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo e jornalista italiano Paolo Flores d’Arcais, figura influente no meio Intelectual europeu e fundador da revista Micromega, ocorrido em fevereiro de 2000 no Teatro Quirino em Roma. 
O debate é precedido por uma introdução onde cada debatedor resume o seu posicionamento sobre a questão. Abaixo, seguem os resumos dos dois textos introdutórios e, em seguida a síntese do debate.

A PRETENSÃO DA VERDADE POSTA EM DÚVIDA, POR JOSEPH RATZINGER

O cristianismo (fé e prática moral) sempre se apoiou no aspecto divino que a razão pode aceitar, no Deus que a inteligência consegue reconhecer: o cristão reconhece na criatura (a natureza) o seu criador. Os dogmas da fé cristã coincidiam com aquilo que o homem trazia no coração, com aquilo que é “bom por natureza, Rm 2, 14-16)”. Hoje, esta pretensão de verdade no âmbito da filosofia, da história e das ciências naturais é duramente combatida. Pode-se dizer, até, que os conceitos de cristianismo e racionalismo se tornaram contraditórios. A Teoria da Evolução tenta formular uma interpretação científica do mundo sem Deus. Se, porém, a natureza se desenvolveu a partir do acaso (irracional), atiçada pela necessidade, pode-se deduzir que a racionalidade que nela percebemos seria, também, fruto do irracional, da vitória do mais adaptado. “Tudo isso é pouco apropriado para uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo e da necessária abnegação de cada um”, diz Ratzinger. Se o racionalismo consegue aceitar, a seu modo, o irracional, também o cristianismo, por sua opção pela primazia da razão, é racionalismo. O “amor” do Criador pela criatura e a “razão” são os pilares do real, conclui o Cardeal

 ATEÍSMO E VERDADE, POR PAOLO FLORES D’ARCAIS

Segundo a tradição cética e ateia, as objeções feitas contra as “provas racionais da verdade da fé” foram tão negligentemente refutadas pela Igreja que, ainda hoje, constituem o “horizonte implícito do debate entre crentes e não crentes”. A Igreja, porém, “só está interessada em discutir -e com isso ‘proclamar’- a religião como sentido da vida, não mais como verdade”. Segundo d’Arcais, a Igreja, hoje, só teme o “ceticismo consumista”, o “‘ateísmo’ prático do hedonismo” e, portanto, pretende “converter” a partir de emoções e necessidades e não de razões. Seria a “consolação” que ela é capaz de dar à existência muito mais importante que o seu conteúdo de verdade? As principais objeções céticas e ateias podem ser resumidas assim:

1ª) Nossas experiências estão limitadas pelo tempo e pelo espaço. Além destes limites, qualquer saber é ilusório, toda a afirmação é arbitrária, pode-se provar qualquer coisa e o seu contrário.

2ª) Toda relação de causa e efeito, do tipo “criador-criatura”, que se pretenda admitir implica numa experiência que a demonstre e isto nunca ocorreu.

3ª) Por que Deus não elimina os males do mundo? As respostas tentadas criaram ainda mais objeções. Já tentaram convencer que o “mal não é mal”, é uma enganosa ilusão do nosso ponto de vista limitado. Este argumento, como todos os outros, não responde a nada apenas suprime a pergunta.

4ª) Se Deus criou o homem livre para escolher entre o bem e o mal, a possibilidade do mal faz parte da criação e, portanto, do próprio criador. Devemos admitir, então, que Deus ou não é infinitamente bom ou não é onipotente, ou seja, não é Deus.

Conclui falando sobre a possibilidade de um compromisso (e um desafio) comum para crentes e não crentes, um compromisso lastreado no Evangelho como opção ética. Uma opção pela caridade desinteressada na “seriedade da existência”.

 O DEBATE: DEUS EXISTE?

 Ao resumir este confronto, tentei ater-me apenas à questão central, ou seja, a argumentação lançada diretamente sobre a pergunta “Deus existe?”

 D’ArcaisEm um debate com estas características há uma grande assimetria, porque o crente está interessado em converter o não crente [...]. Por outro lado, o ateu não está interessado em absoluto em convencer o crente da inexistência de Deus [...]. (p.28)

[...] ‘credo quia absurdum’, ou seja, ‘a fé é escândalo para a razão’ [frase atribuída a Tertuliano no escrito “De Carne Christi” onde declara que a crucificação e morte de Cristo “é crível porque inconcebível”, e sua ressureição é “segura porque impossível”]. Se isso é a fé, não surge nenhum conflito com o não crente, porque uma fé com essas caraterísticas não pretenderá se impor, só pedirá que a respeitem. Mas se a fé católica pretende ser o resumo e a culminância da razão [...] é inevitável que mais tarde caia na tentação de se impor, inclusive mediante o braço secular do Estado. (p.29)

RatzingerÉ verdade que Paulo fala do ‘escândalo’ da fé, [1Cor 1, 18-31] e vemos que o escândalo existe em todas as gerações. (p.30)

Mas também tinha certeza de que não estava anunciando algo absurdo, capaz de satisfazer só a alguns, e sim algo que levava consigo uma mensagem capaz de apelar à razão dos homens [...]. E São Pedro, na primeira carta, [1Pd 3, 13-16] diz explicitamente: devereis sempre estar dispostos a ‘dar razão’ de vossa esperança [...]. Ou seja: têm de estar dispostos a demonstrar o ‘logos’, isto é, o sentido profundamente racional de suas convicções. (p.31)

D’ArcaisE, porém, a mim parece evidente, lendo os textos, que para as primeiras gerações de cristãos não é a razão que leva a crer, e sim a fé [...]. (p.32)

RatzingerSão Paulo está convencido de que a fé cristã apela à razão, mas também está convencido de que vai além das coisas evidentes para a razão, porque, assim, eu entendo a São Paulo, está em jogo o amor, o amor que não é antirracional, mas que excede em muito a razão. (p.33)

E a novidade do cristianismo, segundo esses padres, [os das primeiras gerações] é que esse mesmo Deus oculto, pressentido, depois se manifesta, e naturalmente ultrapassa radicalmente tudo o que se podia ‘saber’ e, apesar disso, demonstra-se em unidade com essa busca humana. (p.34)

D’Arcais: [...], mas nunca encontramos a afirmação de que aquilo que é distintivo do cristianismo, ou seja, a fé em Cristo ressuscitado, possa ser demonstrado com a razão. (p.36)

RatzingerNão obstante, gostaria de voltar ao problema da racionalidade da fé. É verdade que Paulo, por um lado, reconhece a evidência do Deus único, mas tem certeza, como eu também tenho, de que não se pode demonstrar racionalmente a divindade de Cristo e, portanto, a ressureição. (p.51)

[...] para o modo como eu entendo seu argumento ‘du pari’ –Pascal diz: ‘a experiência’ e aí advertimos também seu século – ‘é condição do conhecimento; se tu não fazes nenhuma tentativa de ter conhecimento da fé cristã, é lógico que não possas ter conhecimento dela’E assim diz: ‘laça-te à realidade, faze a tentativa, o experimento, e verás a lógica que há dentro dela’. (p.52)

[...] qual é o fundamento da inviolabilidade de alguns direitos e da inadmissibilidade de algumas leis; qual é o fundamento desse limite de nosso poder legislativo? Nós dizemos que é a criação, a proveniência de uma mente, de um logos. (p.67)

D’ArcaisSão direitos civis, ou seja, são uma escolha nossa sobre a qual fundamentar a convivência. E são, em determinado aspecto, [...] o resultado da secularização de alguns valores cristãos. (p.75)

[Porém,] nós vivemos em democracia graças também a muitos não crentes que há cinquenta anos sacrificaram sua vida, até mesmo em tenra idade -pensando que era a única e que com isso tudo se acabava -, e sacrificaram para nos dar um futuro democrático contra o fascismo. (p.81)

CONCLUSÃO

O debate, que foi muito mais abrangente -abarcou também questões políticas, culturais e éticas contextualizadas historicamente-, deixou a certeza de que não há ainda respostas contundentes para a questão da racionalidade da fé no campo lavrado pela ciência até aqui. Há apenas a fé que “faz vibrar em alguns cordas que ,em outros, permanecem inertes” e que não consegue ser analítica, didática, matemática, mas pode ser entendida no coração; apenas ela, por enquanto, nos fornece uma resposta.