A PRETENSÃO DA VERDADE POSTA EM DÚVIDA, POR JOSEPH RATZINGER
O cristianismo (fé e prática moral) sempre se apoiou no aspecto divino que a razão pode aceitar, no Deus que a inteligência consegue reconhecer: o cristão reconhece na criatura (a natureza) o seu criador. Os dogmas da fé cristã coincidiam com aquilo que o homem trazia no coração, com aquilo que é “bom por natureza, Rm 2, 14-16)”. Hoje, esta pretensão de verdade no âmbito da filosofia, da história e das ciências naturais é duramente combatida. Pode-se dizer, até, que os conceitos de cristianismo e racionalismo se tornaram contraditórios. A Teoria da Evolução tenta formular uma interpretação científica do mundo sem Deus. Se, porém, a natureza se desenvolveu a partir do acaso (irracional), atiçada pela necessidade, pode-se deduzir que a racionalidade que nela percebemos seria, também, fruto do irracional, da vitória do mais adaptado. “Tudo isso é pouco apropriado para uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo e da necessária abnegação de cada um”, diz Ratzinger. Se o racionalismo consegue aceitar, a seu modo, o irracional, também o cristianismo, por sua opção pela primazia da razão, é racionalismo. O “amor” do Criador pela criatura e a “razão” são os pilares do real, conclui o Cardeal
Segundo a tradição cética e ateia, as objeções feitas contra as “provas racionais da verdade da fé” foram tão negligentemente refutadas pela Igreja que, ainda hoje, constituem o “horizonte implícito do debate entre crentes e não crentes”. A Igreja, porém, “só está interessada em discutir -e com isso ‘proclamar’- a religião como sentido da vida, não mais como verdade”. Segundo d’Arcais, a Igreja, hoje, só teme o “ceticismo consumista”, o “‘ateísmo’ prático do hedonismo” e, portanto, pretende “converter” a partir de emoções e necessidades e não de razões. Seria a “consolação” que ela é capaz de dar à existência muito mais importante que o seu conteúdo de verdade? As principais objeções céticas e ateias podem ser resumidas assim:
1ª) Nossas experiências estão limitadas pelo tempo e pelo espaço. Além destes limites, qualquer saber é ilusório, toda a afirmação é arbitrária, pode-se provar qualquer coisa e o seu contrário.
2ª) Toda relação de causa e efeito, do tipo “criador-criatura”, que se pretenda admitir implica numa experiência que a demonstre e isto nunca ocorreu.
3ª) Por
que Deus não elimina os males do mundo? As respostas tentadas criaram ainda
mais objeções. Já tentaram convencer que o “mal não é mal”, é uma enganosa
ilusão do nosso ponto de vista limitado. Este argumento, como todos os outros,
não responde a nada apenas suprime a pergunta.
4ª) Se
Deus criou o homem livre para escolher entre o bem e o mal, a possibilidade do
mal faz parte da criação e, portanto, do próprio criador. Devemos admitir,
então, que Deus ou não é infinitamente bom ou não é onipotente, ou seja, não é
Deus.
Conclui
falando sobre a possibilidade de um compromisso (e um desafio) comum para
crentes e não crentes, um compromisso lastreado no Evangelho como opção ética.
Uma opção pela caridade desinteressada na “seriedade da existência”.
[...] ‘credo
quia absurdum’, ou seja, ‘a fé é escândalo para a razão’ [frase
atribuída a Tertuliano no escrito “De Carne Christi” onde
declara que a crucificação e morte de Cristo “é crível porque inconcebível”, e
sua ressureição é “segura porque impossível”]. Se isso é a fé, não
surge nenhum conflito com o não crente, porque uma fé com essas caraterísticas
não pretenderá se impor, só pedirá que a respeitem. Mas se a fé
católica pretende ser o resumo e a culminância da razão [...] é
inevitável que mais tarde caia na tentação de se impor, inclusive mediante o
braço secular do Estado. (p.29)
Ratzinger: É verdade que
Paulo fala do ‘escândalo’ da fé, [1Cor 1, 18-31] e vemos que o
escândalo existe em todas as gerações. (p.30)
Mas
também tinha certeza de que não estava anunciando algo absurdo, capaz de
satisfazer só a alguns, e sim algo que levava consigo uma mensagem capaz de
apelar à razão dos homens [...]. E São Pedro, na primeira carta, [1Pd
3, 13-16] diz explicitamente: devereis sempre estar dispostos a ‘dar
razão’ de vossa esperança [...]. Ou seja: têm de estar
dispostos a demonstrar o ‘logos’, isto é, o sentido profundamente racional de
suas convicções. (p.31)
D’Arcais: E, porém, a
mim parece evidente, lendo os textos, que para as primeiras gerações de
cristãos não é a razão que leva a crer, e sim a fé [...]. (p.32)
Ratzinger: São Paulo
está convencido de que a fé cristã apela à razão, mas também está convencido de
que vai além das coisas evidentes para a razão, porque, assim, eu entendo a São
Paulo, está em jogo o amor, o amor que não é antirracional, mas que excede em
muito a razão. (p.33)
E a
novidade do cristianismo, segundo esses padres, [os das primeiras
gerações] é que esse mesmo Deus oculto, pressentido, depois se
manifesta, e naturalmente ultrapassa radicalmente tudo o que se podia ‘saber’
e, apesar disso, demonstra-se em unidade com essa busca humana. (p.34)
D’Arcais: [...], mas nunca
encontramos a afirmação de que aquilo que é distintivo do cristianismo, ou
seja, a fé em Cristo ressuscitado, possa ser demonstrado com a razão.
(p.36)
Ratzinger: Não obstante,
gostaria de voltar ao problema da racionalidade da fé. É verdade que Paulo, por
um lado, reconhece a evidência do Deus único, mas tem certeza, como eu também
tenho, de que não se pode demonstrar racionalmente a divindade de Cristo e,
portanto, a ressureição. (p.51)
[...] para
o modo como eu entendo seu argumento ‘du pari’ –Pascal diz: ‘a experiência’ e
aí advertimos também seu século – ‘é condição do conhecimento; se tu não fazes
nenhuma tentativa de ter conhecimento da fé cristã, é lógico que não possas ter
conhecimento dela’. E assim diz: ‘laça-te à realidade, faze a
tentativa, o experimento, e verás a lógica que há dentro dela’. (p.52)
[...] qual
é o fundamento da inviolabilidade de alguns direitos e da inadmissibilidade de
algumas leis; qual é o fundamento desse limite de nosso poder legislativo? Nós
dizemos que é a criação, a proveniência de uma mente, de um logos. (p.67)
D’Arcais: São direitos
civis, ou seja, são uma escolha nossa sobre a qual fundamentar a convivência. E
são, em determinado aspecto, [...] o resultado da
secularização de alguns valores cristãos. (p.75)
[Porém,]
nós vivemos em democracia graças também a muitos não crentes que há cinquenta
anos sacrificaram sua vida, até mesmo em tenra idade -pensando que era a única
e que com isso tudo se acabava -, e sacrificaram para nos dar um futuro
democrático contra o fascismo. (p.81)
CONCLUSÃO
O debate, que foi muito mais abrangente -abarcou também questões políticas, culturais e éticas contextualizadas historicamente-, deixou a certeza de que não há ainda respostas contundentes para a questão da racionalidade da fé no campo lavrado pela ciência até aqui. Há apenas a fé que “faz vibrar em alguns cordas que ,em outros, permanecem inertes” e que não consegue ser analítica, didática, matemática, mas pode ser entendida no coração; apenas ela, por enquanto, nos fornece uma resposta.