Por outro lado, inspirados
pelo trabalho de Bruno Bettelheim, sentem-se também instigados pelo...
[...] porquê de determinados
contos terem se celebrizado, durado, permanecido com um núcleo comum tão
preservado, sendo que não são necessariamente muito melhores do que outros
(p.23).
Estes contos conteriam
elementos específicos que interessariam à criança ouvir em certas fases do seu
desenvolvimento, ajudando-as, assim, a organizar e entender sentimentos
contraditórios. Não seriam apenas os componentes mais evidentes da estória
-trama, personagens, costumes, cenário, etc.- que atrairiam esse interesse, mas
algo mais subjetivo, talvez “subliminar”, que aflora através combinação desses
componentes.
A ideia é ...
[...] que a eficácia atual dos contos folclóricos em nossa subjetividade não retire sua força necessariamente do que teria sido sua constelação de sentido inaugural, mas em sentidos outros que ela possa evocar no momento presente de sua narrativa (p. 177).
Se por um lado as estórias
ilustram convincentemente certos dramas adultos ou infantis, por outro também
podem acolher analogias, associações e comparações que geram sentidos descolados
da própria estória e que fluem para muito longe, perdendo o contato com ela. Em
determinados momentos, tenho a impressão de que os autores se deixam levar por
este fluxo.
Numa dessas estórias, por
exemplo, uma mulher grávida, muito desejosa de uma certa hortaliça, o raponço,
força o marido a roubá-la do jardim de uma vizinha, uma bruxa muito malvada.
Sendo surpreendido numa das incursões é obrigado -para salvar a própria vida e
obter todo o raponço que a esposa necessitasse - a prometer a
filha que nasceria à feiticeira. Nascida, a promessa é cumprida e a feiticeira
batiza a menina de "Rapunzel" em alusão aos fatídicos raponços.
A análise perspicaz do conto
explora toda a sua riqueza: as dificuldades da gravidez, o papel instrumental e
apagado do pai, a possessividade materna, a descoberta do amor, etc. Porém, na
minha opinião, um certo devaneio insinua-se nesta passagem:
Quem desaparece é o pai, pois
ele abdica dessa filha por não poder satisfazer a sua mulher. Essa insatisfação
se expressa pela exigência de mais raponços, num apetite insaciável que o deixa
impotente. É como se a mulher [representando a “dualidade” mãe/bruxa madrasta]
dissesse: já que não podes me satisfazer, a filha que virá será o meu objeto de
satisfação (p.66).
As palavras “satisfação”, “insatisfação”, “apetite insaciável” e “impotente” nos sopram uma conotação sexual no drama vivido pelo casal. Se realmente for essa a intenção, seria quase como “torturar” o conto para que ele gere um sentido que não pode gerar. Penso que o pai, a mãe e o recurso dos raponços são meros coadjuvantes utilizados para introduzir e contextualizar de modo tragicômico, mas sem nada escondido nas “entrelinhas”, o drama vivido por Rapunzel sob o jugo da bruxa (ao menos considerando a maneira como o conto nos é apresentado hoje). Além disso, fica claro que o homem se esforça para “satisfazer” a sua mulher -e consegue: coloca em risco a própria vida e abre mão da filha para garantir à esposa toda a quantidade da hortaliça que ela desejasse.
Outro exemplo eu retiro
de "Chapeuzinho Vermelho". Como é destacado por Diana e Mário, nas
versões mais antigas do conto os aspectos eróticos da narrativa são bem
evidentes. Concordo também que na versão mais recente tais aspectos, embora
suavizados, ainda são perceptíveis.
[...] pode-se pensar que ela
[a estória] seja alusiva ao potencial de sedução contido nas relações com os
adultos [...] (p.59).
Também concordo. Porém, no
seguinte trecho ...
Como o cão doméstico se presta
para encarnar a fera de que necessitamos invocar em determinados momentos
[...], o lobo é, em definitivo, essa versão selvagem do perigo doméstico [um
perigo costumeiro nas grandes florestas, é verdade], uma prova de que o papai
bonzinho que se tem em casa [novamente o pai] pode tornar-se uma figura
ameaçadora e temível (p. 59).
O lobo é um perigo a que estão
sujeitas todas as meninas que se aventuram fora dos limites do lar, pelos
caminhos da floresta, e que conversam com estranhos -estranhos costumeiros, é
verdade, mas em quem são orientadas a não confiar. É um predador astuto; é o
que se espera encontrar na perigosa floresta. O pai, ao contrário, é um
protetor, é o que se espera de quem habita no perímetro do lar. Não duvido que
o protetor possa se transformar em predador, mas esta hipótese seria melhor
extraída de outra estória, a do cão que atacou o dono, por exemplo.
Destaco ainda, na parte em que
Mário e Diana falam das histórias contemporâneas, mais especificamente da "Turma
da Mônica", as análises um pouco esquisitas sobre a personagem Floquinho (o cachorro do
Cebolinha) e a sua capacidade de esconder qualquer coisa sob o seu pelo:
Floquinho é etéreo, mas não só
isso, ele é uma espécie de buraco negro de baixa gravidade. [...] Ele parece
uma porta para outra dimensão, uma dimensão interior mágica onde tudo cabe e o
tamanho não é problema [p.209].
Ou seja, a vagina pode ser
concebida como etérea, como o Floquinho, o qual, em sua parte visível, é
coberto de pelos; assim como o órgão sexual feminino é um orifício com bordas
peludas. Se a vagina é um buraco peludo, Floquinho é um peludo buraco [p.210].
Então, concluo que o Floquinho
pode funcionar uma alegoria para o órgão sexual feminino: uma espécie de “buraco
negro de baixa gravidade”, ou seja, “um buraco peludo” ou "um peludo
buraco" “onde tudo cabe e o tamanho não é problema”. Achei bem esquisito!
Mais adiante, os autores
advertem:
É fundamental que fique claro
que ele não é exatamente uma representação do órgão feminino, apenas evoca
algumas das suas possibilidades lógicas, considerando o pensamento infantil, é
claro [p.210].
Embora eu considere as ressalvas que fiz bastante razoáveis, elas não desmerecem o livro de forma alguma. Gostei e recomendo iniciar a leitura do livro pelo capítulo XII (A Psicanálise dos Contos de Fadas) seguindo através das introduções das partes I (Histórias Clássicas) e II (Histórias Contemporâneas) até a conclusão (O Valor de uma Boa História). Depois, selecione as histórias que achar mais interessantes e leia as análises.