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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Sapiens, o livro. Resenha

Sapiens (Yuval Noah Harari, L&PM, 2018), como diz o subtítulo, é “uma breve história da humanidade”, contada em quatro grandes atos.

O que pretendia ser uma resenha foi se transformando numa espécie de resumo. Porém, no final, fiquei com a sensação de não ter feito nem uma coisa nem outra. A maestria com que Yuval Noah Harari vai desdobrando o assunto -de forma encadeada, com uma linguagem acessível, exemplificando cada conceito- nos faz esquecer a complexidade e a abrangência da obra. Todavia, é impossível condensá-la.

Harari começa falando da matéria primordial surgida há 13,8 bilhões de anos, mas chega rapidamente ao nascimento das diferentes espécies humanas há 3 milhões de anos aproximadamente. Depois, nos deixa intrigados com a enigmática “Revolução Cognitiva” experimentada unicamente pela espécie dos sapiens há 70 mil anos -o começo da nossa história.

Um aspecto importante, que por nós leigos talvez não seja sabido, é que não devemos imaginar a espécie humana evoluindo em linha reta: dos australopithecus ao Homo erectus, deste aos neandertais e daí ao Homo sapiens. A partir dos australopithecus (últimos ancestrais comuns entre homens e macacos), várias espécies humanas coexistiram, sendo os neandertais contemporâneos dos sapiens até 30 mil atrás e estes do Homo floresiensis até 13 mil anos atrás, por exemplo.

Contudo, o que intriga mesmo é que, a partir de 70 mil anos atrás, o Homo sapiens começou a se destacar das demais espécies de forma surpreendente, inclusive dos neandertais que eram mais fortes, tinham o cérebro maior e eram melhor adaptados ao frio. A partir de então, os sapiens começaram a deixar a Africa espalhando-se pelo Oriente Médio, pela Europa e pelo leste da Ásia. Acabaram por banir os neandertais e todas as outras espécies da face da Terra.

Foi, segundo o autor, o desenvolvimento de um tipo de linguagem totalmente novo, revolucionário, o grande responsável por elevar os sapiens à categoria de donos do mundo. Esta linguagem permitiu a criação de “ficções”, “imaginações coletivas”, mitos compartilhados por todos: povo, espíritos protetores, inimigos, etc. A crença coletiva em coisas que não existem natureza fez com que “estranhos” -elementos da mesma espécie, porém de bandos diferentes- se dispusessem a formar comunidades maiores e a cooperar na defesa, na caça ou no cultivo de alimentos; acreditassem nas mesmas divindades; obedecessem às mesmas leis e pudessem negociar entre si de forma mais dinâmica.

O autor esclarece que, em ambientes estáveis, o comportamento de animais sociais como os humanos, os macacos, as baleias, e os lobos é determinado em grande medida pelo seu DNA. Mudanças drásticas no comportamento (e na tecnologia, no caso dos humanos) só seriam possíveis se algo mudasse nos seus “DNAs”. O Homo erectus, por exemplo, que surgiu em função de mutações genéticas há 2 milhões de anos, caracterizou-se pelo desenvolvimento de novas ferramentas de pedra que continuaram praticamente inalteradas enquanto a espécie não passou por novas alterações genéticas, o mesmo se deu com o seu comportamento social. Por outro lado, a Revolução Cognitiva permitiu que os sapiens, em determinado momento, mudassem o seu comportamento e transmitissem novos conhecimentos às gerações futuras rapidamente, sem que quaisquer mudanças genéticas ou ambientais significativas fossem notadas. Como diz o autor, “A Revolução Cognitiva é, portanto, o ponto em que a história declarou independência da biologia”.

O livro segue contando sobre a fixação do homem nos campos há 12 mil anos -a “Revolução Agrícola”. A maior quantidade de alimento disponível e a capacidade de cooperar foram fundamentais para sobrevivência dos sapiens e a preservação do seu DNA.

Com o desenvolvimento de comunidades cada vez maiores veio a necessidade de contar e contabilizar medidas, dívidas, impostos, créditos, pessoas, etc. Naturalmente, o cérebro humano se sobrecarregava ao tentar armazenar e manipular estas informações. Entre 3.500 e 3.000 a.C., os sumérios inventaram um método para armazenar e processar dados fora do cérebro. Hoje, chamamos este método de “escrita”. Porém, era um sistema parcial, pois não podia representar a linguagem falada. Entre 3.000 e 2.500 a.C. o sistema sumério foi sendo enriquecido com mais símbolos e, progressivamente, foi se transformando no sistema completo de escrita que conhecemos como cuneiforme. Mais ou menos na mesma época, os egípcios desenvolveram outro sistema de escrita completo, o sistema hieroglífico.

Na terceira parte, o autor nos expõe um panorama da humanidade ao longo do tempo, onde determinadas “ordens” começaram a atravessar fronteiras e infiltrarem conceitos, crenças e mitos muito poderosos nas culturas com que tiveram contato. Tais ordens -política, econômica e religiosa- funcionavam (e ainda funcionam), cada uma, como uma espécie de elemento “unificador”, agindo através ficções compartilhadas: império, mercado, moeda, nação, direitos humanos, empresas, associações, deuses, doutrinas (cristianismo, budismo, liberalismo, socialismo...), etc. Embora excludentes em alguma medida, estas ficções tendem a transformar o mundo numa unidade global, não totalmente homogênea, mas orgânica. A análise de milênios, e não de séculos, segundo Harari, nos fornece provas irrefutáveis desta unidade.

Harari diz que a “Revolução Científica”, que teve início há mais ou menos 500 anos, foi fomentada pela nossa “disposição para admitir ignorância”, para admitir que as grandes escrituras (a Bíblia, o Corão e os Vedas, por exemplo) não nos contavam tudo o que precisávamos saber sobre o mundo, o homem e a vida. A partir daí, o homem moderno aprendeu a coletar evidências empíricas, reuni-las e analisá-las utilizando ferramentas matemáticas para gerar teorias abrangentes que explicassem a realidade.

A ciência é influenciada por interesses econômicos, políticos e religiosos, diz Harari. A ideologia que financia também influencia a agenda científica e diz o que fazer com as descobertas. Entre 1.500 e 1.850 a Europa não tinha nenhuma vantagem tecnológica ou econômica sobre o resto do mundo. Porém, a aliança entre imperialismo, ciência e capitalismo, que começou a ser construída 400 anos antes, começou a fazer a diferença. Os impérios desejavam novos territórios que pudessem garantir vantagens econômicas e militares estratégicas e buscavam na ciência um parceiro para mapear as regiões, analisar potencialidades econômicas e recursos naturais, estudar os costumes, a língua e identificar vulnerabilidades. A ciência, por sua vez, contaria com todo apoio institucional, logístico e militar que necessitasse do império, inclusive para empreender seus próprios estudos e pesquisas, fossem eles quais fossem. Estes esforços, obviamente, eram financiados pelos capitalistas que esperavam lucrar com as novas descobertas, além de obter o apoio do império para os seus empreendimentos nas novas terras. Criou-se, assim, um ciclo de “retroalimentação” entre império, ciência e capital, impulsionado pela força da Revolução Industrial.

Talvez, isto ajude a explicar porque a Revolução Industrial ocorreu na Europa e não na China ou na India. Sem dúvida, o Oriente possuía mentes brilhantes e elas influenciaram significativamente a produção de conhecimento na Europa, porém, como diz o autor, “eles careciam dos valores, dos mitos, do aparato jurídico e das estruturas sociopolíticas que levaram séculos para se formar no Ocidente e que não podiam ser copiadas e internalizadas rapidamente”. Tais estruturas geraram na Europa um ciclo virtuoso que produzia cada vez mais poder e influência para os impérios, conhecimentos científicos e avanços tecnológicos para a sociedade e lucros para o capital.

Na quarta e última parte do livro, Harari aborda alguns aspectos interessantes sobre a doutrina do capital. Baseando-se nos ensinamentos de Adam Smith, explica o postulado que afirma que a busca pelo lucro, mesmo de forma egoísta, é algo salutar para a sociedade desde que uma parte deste lucro retornasse sob a forma de investimento direto ou de crédito, gerando assim mais empregos, maior produção e, consequentemente, maiores lucros. Esta lógica, que se transformou numa espécie de ética capitalista, é reflexo da crença no progresso: a Revolução Científica mostrou que descobertas geográficas, invenções tecnológicas, melhorias nas técnicas de cultivo dos alimentos e de produção industrial, por exemplo, aumentariam a riqueza total no futuro. A confiança de que o futuro seria mais próspero incentivaria a concessão de mais crédito que, por sua vez, geraria mais empregos e maiores lucros.

Eu, particularmente neste ponto, gosto de lembrar que, por outro lado, o capitalismo e a Revolução Industrial aumentaram as dimensões e o papel ocupados pelo “mercado” nas nossas vidas. Esta potente ficção -cuja estrutura socioeconômica, cultural e política ultrapassa em significado e importância o volume das mercadorias que fluem através dela- tornou-se fundamental para o funcionamento das sociedades industriais capitalistas e socialistas. Esta “entidade” nos incute desejos, padrões estéticos e comportamentais, influencia as nossas opiniões, nos diz que profissões devemos seguir e massifica nossas escolhas. Finge nos perceber como indivíduos, mas, junto com o Estado, apenas nos desagrega, enfraquecendo os vínculos com os nossos tradicionais provedores: a família e a comunidade.

Outro aspecto importante destacado nesta obra é sobre os credos como o islamismo, o judaísmo e o cristianismo, que fazem da “vida após a morte” o grande sentido da vida. A partir do século XVIII, outras ideologias como liberalismo e o socialismo estariam enfraquecendo este "interesse": “nossas mentes mais brilhantes não estão desperdiçando tempo tentando dar significado à morte. Em vez disso, estão ocupadas investigando os sistemas fisiológico, hormonal e genético, responsáveis pelas doenças e pela velhice”.

Como diz Harari, no século XXI o homem começa a transcender seus limites biológicos, violar as leis da “seleção natural”. Estamos entrando na era do “design inteligente”, a era da engenharia biológica (tratamentos hormonais e modificações genéticas), da engenharia cyborg (incorporação de partes inorgânicas à seres orgânicos) e da engenharia da vida inorgânica (inteligência artificial capaz de aprendizado independente). Tudo está indo rápido demais, talvez mais rápido do que a nossa capacidade de fazer uso apropriado destas tecnologias.

O autor encerra o livro retratando um olhar sombrio sobre o porvir da humanidade: “o ritmo do desenvolvimento tecnológico logo levará à substituição do Homo sapiens por seres completamente diferentes [... com] mundos cognitivos e emocionais muito diferentes”.

Por outro lado, também reconhece que, neste longo caminho que estamos percorrendo, o destino dos sapiens ainda não foi completamente traçado. Harari ressalta que, às vezes, fazemos projeções distorcidas em função dos acontecimentos recentes e que prováveis acontecimentos fortuitos poderão nos impelir para qualquer direção no futuro. Qualquer retrospectiva tende a enxergar os fatos passados ocorrendo de forma encadeada, natural, quase óbvia, porém, na realidade, a história progride de forma misteriosa, avançando de bifurcação em bifurcação de maneira inesperada.

Neste sentido, Harari traz uma lembrança oportuna: de 1940 a 1970, com o advento da bomba atômica e, posteriormente, o pouso do homem na lua, todos temiam uma catástrofe nuclear e imaginavam que nos anos 2000 as pessoas estariam vivendo em colônias espaciais. Porém, “ninguém previu a internet”.