Desde que li o poema "Envelhecer" de Mário Quintana[1], um sentimento atípico me envolveu, digo atípico porque não trazia sinais de angústia ou tristeza, apenas uma branda sensação de recolhimento e aceitação. Curioso, garimpei mais treze sobre o tema e ainda outros cinco sobre a morte, seguindo o gosto pessoal.
A obra deste poeta, de forma geral, retrata aspectos da vida cotidiana, quase sempre de forma irônica e bem humorada, mas também lírica. Quintana preferia a linguagem coloquial, mais acessível, em poemas curtos –alguns, de tão curtos, parecem até ditados populares– e normalmente usava o verso livre, embora o soneto e a rima também apareçam com frequência.
Ao final da leitura dos dezoito poemas, ficou uma impressão geral de leveza devida, suponho, ao humor delicado do poeta, como em “O último poema”. Mas também sobrou graça como nos versos de “Viver” e “Seiscentos e sessenta e seis”, por exemplo.
No poema abaixo, “Luz por dentro”, Quintana fala uma beleza metafisica que emana de alguns vestutos, beleza transcendente que ele prefere chamar de alma (tema que, aliás, aparece outras vezes na sua obra).
Mas há uma beleza interior, de dentro para fora, a transluzir de certas avozinhas trêmulas, de certos velhos nodosos e graves como troncos. De que será ela feita, que nem notamos como a erosão dos anos os terá deformado? Deviam ser caricaturas mas não fazem rir, uns aleijões mas não causam pena. O mesmo não nos acontece ante o penoso espetáculo de um animal velho. Eu gostaria de acreditar que essa inexplicável beleza dos velhos talvez fosse uma prova da existência da alma.
Algumas vezes, o poeta evoca a infância como chama que permanece viva dentro de nós, quase intacta na maturidade e na velhice, seja de forma lúdica ou saudosa.
Viver. Sapato florido-1948 (Globo, 2005)
Vovô ganhou mais um dia. Sentado na copa, de pijama e chinelas, enrola o primeiro cigarro e espera o gostoso café com leite.
Lili, matinal como um passarinho, também espera o café com leite. / Tal e qual vovô.
Pois só as crianças e os velhos conhecem a volúpia de viver dia a dia, hora a hora, e suas esperas e desejos nunca se estendem além de cinco minutos…
Os velhinhos. Velório sem defunto, Seleção Mercado Aberto-1990 (Globo, 2009)
Como os velhinhos – quando uns bons velhinhos / São belos, apesar de tudo!
Decerto deve vir uma luz de dentro deles… / Que bem nos faz sua presença!
Cada um deles é o próprio avô / Daquele menininho que durante a vida inteira
Não conseguiu jamais morrer dentro de nós!
Quintana diz que não nos reconhecemos nos velhos e que o ocaso nos pega de surpresa quase sempre, só nos damos conta da velhice quando a esfregam na nossa cara: "Velhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum." (Reflexos, Reflexões... A vaca e o hipogrifo,1977. Objetiva, 2012).
Recordo ainda... Rua dos cataventos-1940 (Editora da Universidade-UFRGS, 1992)
Recordo ainda… e nada mais me importa… / Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança, /Algum brinquedo novo à minha porta…
Mas veio um vento de Desesperança / Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta / Todos os meus brinquedo-s de criança
Estrada afora após segui… Mas, ai, / Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai: / Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai… / Que envelheceu, um dia, de repente!…
Os fantasmas do passado. Esconderijos do tempo-1980 (Alfaguara, 2013)
– E não te lembras daquela vez em que…?
Faço que me lembro. Rio. Solto saudosos suspiros e exclamações de puro gozo. Oh! que monstruosa e implacável memória a dos nossos companheiros de infância.
E depois, como estão envelhecidos, os pobres-diabos! / É o que os torna ainda mais antipáticos.
Da interminável despedida. O aprendiz de feiticeiro-1950 seguido de Espelho mágico-1951. (Objetiva, 2012)
Ó Mocidade, adeus! Já vai chegar a hora! / Adeus, adeus… Oh! essa longa despedida…
E sem notar que há muito ela se foi embora, / Ficamos a acenar-lhe toda a vida…
Envelhecer é desincumbir-se, não sem algum arrependimento, afinal, o tempo passa mansinho, como vento suave e... "Quando se vê, passaram 60 anos! ..."
Seiscentos e sessenta e seis. Esconderijos do tempo-1980 (Alfaguara, 2013)
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo… / Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos! / Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade, / eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente… / E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Das ilusões. Espelho mágico-1951 (Globo, 2005)
Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o. / Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida... / Que extraordinária sensação de alivio!
Também é remoer certos fracassos, insistir em antigas certezas, acolher ainda algumas ilusões..., é não querer crer que se está diante do momento derradeiro. "A experiência de nada serve à gente. / um médico tardio, distraído: / Põe-se a forjar receitas quando o doente / Já está perdido… " (Da experiência. Espelho mágico. Globo, 2005).
Envelhecer. Antologia poética, Seleção Ediouro-1989 (Nova Fronteira, 2015)
Antes, todos os caminhos iam. / Agora todos os caminhos vêm. / A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Do mal da velhice. Caderno H-1973 (Alfaguara, 2013)
Chega a velhice um dia… E a gente ainda pensa / Que vive… E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença / Busca torná-la ainda mais comprida…
Frustração. Caderno H (Alfaguara, 2013)
Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques e não podem sair viajando pelas correntezas do mundo...
Como falar com tanta graça sobre a morte como em “O último poema?! Há uma pitada de humor sutil, sim, mas há também uma saudade juvenil que enche de luz o poema. Nos versos de “Quando eu morrer” o poeta suaviza a ideia de finitude e realça ainda mais a beleza lírica do poema.
O último poema. Quintana de bolso: rua dos cataventos & outros poemas (L&PM, 2007)
Enquanto me davam a extrema-unção, / Eu estava distraído…
Ah, essa mania incorrigível de estar / Pensando sempre n’outra coisa!
Aliás, tudo é sempre outra coisa / – segredo da poesia –
E, enquanto a voz do padre zumbia como um besouro,
Eu pensava era nos meus primeiros sapatos
Que continuavam andando, que continuavam andando,
Até hoje / Pelos caminhos deste mundo.
Quando eu morrer. A rua dos cataventos-1940 (Editora da Universidade-UFRGS, 1992)
Quando eu morrer e no frescor de lua / Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua… / Para as torturas lentas da Expressão!…
Nada mais quero com nenhum de vós! / Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão… / Que linda a Eternidade, amigos mortos,
Eu levarei comigo as madrugadas, / Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas… / E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando, / Na orla negra do seu negro manto…
A sua morte, só sua, é leal companheira, abençoada salvaguarda contra uma eternidade penosa ou entediante demais.
Minha morte nasceu quando eu nasci... / Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo / Na pequenina rua em que vivi
Já não tem mais aquele jeito amigo / De rir que, aí de mim, também perdi
Mas inda agora a estou sentindo aqui, / Grave e boa, a escutar o que lhe digo:
Tu que és minha doce prometida, / Nem sei quando serão nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida... / E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas, / Pensar em ti...saber que tu existes!
Canção de outono. Antologia poética, Seleção Ediouro-1989 (Nova Fronteira, 2015)
O outono toca realejo / No pátio da minha vida. / Velha canção, sempre a mesma.
Sob a vidraça descida… / Tristeza? Encanto? Desejo? / Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido / de carícia a contrapelo… / Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma… / Mas os caminhos do Outono / Vão dar em parte nenhuma!
Em “A gare de Astapovo” Mário Quintana homenageia o grande Leon Tolstói poetizando os últimos e trágicos momentos do velho escritor, mas não sem nos deixar uma pontinha de consolo.
Poema da gare de Astapovo. Esconderijos do tempo-1980 (Alfaguara, 2013)
O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos / E foi morrer na gare de Astapovo!
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso / Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua… / Sentou-se…e sorriu amargamente / Pensando que / Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória, / Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco! / E então a Morte, / Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta, / Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
A Morte chegou na sua locomotiva / (Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho, / E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa… / Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!
[1]Mário Quintana (1906-1994), nascido na cidade do Alegrete no Rio Grande do Sul, embora reconhecido por seus pares (Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, entre outros), era considerado pela crítica da época um poeta menor, sem a necessária complexidade. Mário Quintana só obteve o merecido reconhecimento a partir dos últimos anos de vida.
