A Estância
de Los Tordos ocupa mais de mil alqueires de bons pastos nos dois lados
da fronteira, do Alegrete até Mercedes na província de Corrientes, e produz gado da melhor qualidade.
Nesta região do Pampa, não importa muito de que lado do rio
Uruguai se foi parido, o que conta é onde se finca as raízes e se tira o
sustento. Por aqui, fala-se tanto o castelhano rioplatense quanto o português,
uma mescla de ambos na verdade.
Quem chega a Los Tordos vindo do
Alegrete e entra pela primeira porteira, quase em Uruguaiana, logo se depara
com um vasto conjunto de galpões construídos no alto de uma coxilha a mais ou menos
uma légua da entrada. Atrás da coxilha, há um grande açude com uma na represa margem oeste. Na margem
norte, dalí, a um pouco mais de meia légua, fica a sede da fazenda. Ao lado da sede, à direita de quem chega,
uma bela capela consagrada a Nossa Senhora da Conceição, construída em estilo
colonial português, chama a atenção.
Todos os sábados à tardinha, aproveitando que a lida
termina mais cedo, a peonada se ajunta sob o telheiro conjugado ao galpão que
serve de dormitório. Ao redor de um grande fogo de chão, tomam uns tragos entre um
mate e outro, assam pequenos nacos carne, contam lorotas e, mais tarde, de
bucho cheio, a maioria se debanda para vila.
A vila fica dentro dos limites da fazenda e é composta por
um bolicho de respeito, que vende, além de fumo e cachaça, um variado sortimento
de alimentos, roupas e artigos de selaria. Há também um salão de baile que agrega, no fundo e atrás da copa, um cantinho bem ajeitado para o carteado.
Claro, há também o putero, famoso em toda a fronteira oeste, é pequeno, mas bem
selecionado.
No alvorecer do domingo, a gauchada se toca de volta; os
que não tem o seu ranchinho se voltam para o galpão. Ali, há sempre água para o
mate, pão quente, café bem forte e alguns espetos no fogo, tudo disposto no meio do telheiro. Enquanto uns se jogam
logo nas camas de campanha ou nos pelegos espalhados pelo galpão, outros se
amontoam ao redor do fogo para rebater a friagem da madrugada, tudo com muita
gritaria e alvoroço.
No meio do entrevero deste fim de madrugada de domingo, com
a lua ainda iluminando palidamente o telheiro, encontramos o tio Solano
derreado na beira do fogo, cutucando as brasas com um graveto. O tio Solano é
um xiru velho, agregado da fazenda, um sujeito quieto, meio chucro, mas ainda
muy guapo; tem os olhos pequenos e apertados, tez morena, barba rala e grisalha e usa um surrado chapéu de feltro pendurado às costas
por uma tira de couro presa ao pescoço.
“E que tal a
noitada tio Solando...?”, quer saber um taura de poncho sobre o ombro, sorriso
largo e jeito resoluto, recém chegado da vila. “Pois te digo que, depois que o
sol se põe até a alvorada seguinte, não finco mais o pé fora da porteira...”,
diz Solano com uma voz encorpada.
Sentindo contrariedade na resposta o taura se aproxima, e Solano, compenetrado, olhando direto para o braseiro, dispara repentinamente depois de uma breve pausa, para a surpresa de todos: “... pois vou te falar de um acontecimento que, por inteiro, ninguém sabe ainda”. O tom sério e grave do velho chamou a atenção da peonada mais próxima e a vozearia foi se aquietando. Solano fez nova pausa e, depois, num tom melancólico, quase confessional, inicia a sua história. “Mas conta logo”, fala um gauchito afobado que escuta a charla mais de longe. “Te acalma chico, eu conto no meu tempo...”, responde o velho.
–Já faz uns dez anos que eu voltava de uma bailanta junto com o Joca, os mais veteranos aqui lembram do Joca Tabares. O deslavado, que eu trazia de arrasto, encharcado de cachaça, enticava comigo por causa de uma chinoca que ele mesmo me tirou dos braços durante uma vaneira. Daquela vez, resolvi deixar quieto, fui até a copa, pedi um liso e, solito, fiquei apreciando o baile. Mas naquela noite, o desgraçado estava o diabo no corpo, já tinha largado a morena e, num outro canto do salão, esfregava o dedo na cara de um sujeito de queixo torcido, muito mal encarado. Como eu não queria confusão, fui até lá, pedi uma licença, e arrastei o aspa-torta para fora do salão. Lá fora, ainda queria me enfrentar, aí dei-lhe uns guascaços e fui empurrando o sem-vergonha na direção de casa. Quando chegamos no açude, o infeliz quis atalhar o caminho pelo do muro da represa. Está certo, a água estava baixa, não se corria o risco de molhar os pés, mas, de bota, bombacha e borracho ainda por cima já seria facilitar demais ...
Solano faz mais pausa, parece confuso. Procura reorganizar as lembranças e, depois, continua.
–Só me dei conta de que o desgranido já tinha se tocado lá para cima quando ele estava no meio da travessia, faceiro como pinto no lixo. Aí, sem mais nem menos, num vá, o homem resvalou e caiu prá dentro do açude, caiu de poncho e tudo, não deu nem tempo de soltar um berro sequer... A lua era cheia e se espelhava no lago, me toquei até lá, mas quando cheguei não vi mais nada, nem o chapéu, já tinha ido com tudo pro fundo. Cosa de loco che! O açude, perto da represa, é fundo uma barbaridade, tem pelo menos uns dez metros. Falei para o patrão no dia seguinte, ele me olhou, arregalou os olhos, esfregou o bigode e disse: "o Joca!?" Depois, sacudindo a cabeça, me dispensou. Nunca mais tocou no assunto. Choveu quase toda a semana seguinte, a represa transbordou e a água deve ter arrastado a carcaça do pobre lá prá dentro do rio, pensei na época. Cheguei a procurar o corpo, mas não vi mais nem sinal.
Da história até este ponto, alguns já sabiam, mas sobre o motivo da sua chateação tão persistente, o tio Solano revelou o seguinte.
– Depois de rezar muito, pedindo pela alma do falecido e de respeitar os trinta dias de costume, resolvi sair e tomar uns tragos pela alma do Joca. Quis também envidar num carteado lá mesmo no bolicho, mas desisti e resolvi voltar cedo porque o dia seguinte era de lida. A lua estava cheia e a noite cheirosa; era um perfume esquisito, doce, mas não era ruim, parecia cheiro de vela misturado com flor... Vinha no meu tranquito quando cheguei na banda da represa e vi um sujeito aboletado encima do muro; disse prá mim mesmo: olha outro desavisado. O homem olhava pra mim, abanava e apontava pra baixo bem rente ao muro. Achei esquisito, mas fiquei curioso. Fui chegando desprevenido, mas despacito, e o cheiro começou a ficar mais forte... Quando fiquei bem perto do vivente, tomei um baita cagaço e, até hoje, me arrepio só de lembrar: era a assombração do falecido Joca, de chapéu, bota e bombacha, do mesmo jeito que naquela noite infeliz. A la fresca! Me alvorotei e saí de arrancada sem olhar pra atrás. Só fui parar meia légua mais tarde quando testavilhei num cocuruto e dei com os beiços no chão.
Como se sabe, a alma penada só pode ser vista no local da sua morte se o corpo ali permanece. Pode até penar pelas redondezas, furungando aqui e ali, mas só pode assombrar o lugar onde o sujeito defuntou. Desvalida! Ninguém merece ficar assim pra sempre, com o corpo no fundo de uma represa, talvez enredado numa rede de pescaria e até sendo beliscado pelas palometas, quem sabe. Toda alma penada espera pela graça de uma cova decente, em cemitério, com o nome e tudo mais. Na verdade, era só isto que a alma do Joca queria naquela noite que cheirava a velório, mas o cagão do Solano nem pra escutar a pobre se prestou!
“Mas afinal, Solano, o que é que a assombração queria, chê?”
Arremata o taura ainda com o poncho no ombro. “Sei lá! Nem assuntei, sai
atropelando. Vai que quisesse me pegar pelo braço e me puxar lá pra baixo
também.”
Aqui na campanha, um taura não foge de peleia, nem deixa
que qualquer deslavado lhe pise nos calos: passa logo a mão nos fala-verdade e
sai dando de planchaço. Mas com assombração é diferente, pois ninguém sabe ao
certo se é coisa de Deus ou do Diabo. Se for de Deus, respeito! Se for do
Diabo, mais ainda! Não tem jeito, qualquer vivente se caga!
“Mas por que iria te puxar pra represa, homem?” Retruca,
certeiro, o gauchito afobado. Solano olhou meio atravessado, fechou a cara,
apertou os beiços e soltou um longo e lamentoso suspiro, como se fosse o
preâmbulo de um grande desafogo, mas não falou mais nada.
O que o tio veio não contou é que, na verdade, ele já estava encima da represa no momento em que o Joca, bêbado, caiu tentado se agarrar em algo; ele estava bem próximo, e arredou o corpo com medo de ser puxado junto. O motivo do seu desgosto, afinal, não era só o medo da assombração, era também o peso do remorso, uma canga que Solano carregaria pelo resto da vida.
Mas, vá lá! Era quase certo que teria
morrido também, sem adiantar de nada.