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sexta-feira, 14 de junho de 2024

A Terceira Onda, o livro. Resenha

Em 1990, aqui no Brasil, passávamos por um período de redemocratização; com trinta anos de idade na época, eu participaria, pela primeira vez, de uma eleição direta para presidente. Havia uma hiperinflação crônica que nos fazia viver um dia de cada vez sem muita expectativa em relação ao futuro. O Brasil era, muito mais do que hoje, um país de contrastes econômicos e sociais e possuía um descompasso tecnológico alarmante em relação às nações mais desenvolvidas.

Foi neste contexto que iniciei a minha primeira leitura do bestseller de Alvin Toffler, A Terceira Onda (Record, 15ª edição), e lembro que mal consegui vencer os quatro capítulos iniciais. O livro escrito em 1980 está estruturado na trajetória de economias maduras, tecnologicamente avançadas, com altos níveis de renda per capta e índices razoáveis de inflação para a época: EUA, Alemanha, URSS, Japão e Grã Bretanha entre outros eram, nas décadas de 70 e 80, nações que já haviam completado o seu processo de industrialização, atingindo a “crista” do que o autor chamou de “Segunda Onda”. Já demonstravam inclusive, segundo Toffler, certo esgotamento desse modelo e davam sinais claros do nascimento de um novo ciclo, a “Terceira Onda”.

Em algumas regiões do Brasil, tentávamos ainda nos consolidar como uma nação industrial, mas enfrentávamos sérios problemas de infraestrutura, tínhamos inflação com desemprego e, portanto, uma conjuntura pouco atrativa ao investimento. Em outras regiões, ainda derrubávamos florestas e fazíamos “queimadas” para cultivar alimentos, criar gado ou para simplesmente “saquear” a natureza. Ou seja, também éramos um país da “Primeira Onda” apesar de existirem segmentos do agronegócio onde a mecanização e as técnicas modernas de cultivo nos tornavam competitivos no mercado externo. Como eu disse, éramos um país de muitos contrastes (na verdade, ainda somos).

Decorreu talvez desse contexto parte da minha dificuldade em compreender as ideias de Toffler naquela época. Acabando de reler agora essa grande obra, com a vantagem de poder cotejá-la com a história dos últimos 40 anos, constato uma capacidade de síntese e de previsão notáveis.  Conceitos como “Cultura Digital”, “Diversidade Cultural” ou questões sobre a diversificação da matriz energética e as novas relações de poder e influência que se fortalecem atualmente têm algumas de suas primeiras abordagens lançadas nessa obra.

Este livro é uma obra de reflexão de grande amplitude sobre a sociedade e conta com um impressionante poder de síntese. O objetivo dessa reflexão era apontar as prováveis trajetórias da humanidade para as décadas seguintes partindo da análise dos seus ciclos civilizatórios (que ele chamou de “ondas”) e do resultado da interação entre esses eles (ou do “choque entre as ondas”).

A análise tem como ponto de partida o Industrialismo e seus aspectos (ou “esferas”) tecnológicos, sociais, culturais e “informacionais”. A esse ciclo, dá o nome de “Segunda Onda”. Na minha opinião, a grande questão que o autor coloca a respeito desse ciclo é a do rompimento provocado entre “produção e consumo”. Durante a civilização agrícola ou “Primeira Onda”, a maior parte do que se produzia era destinada ao consumo da família ou do grupo que dali tirava o seu sustento, apenas uma pequena parte disso era comercializada.

O Industrialismo partiu esse elo e colocou no lugar um elemento que, nos últimos 300 anos, adquiriu uma forma extremamente ramificada e complexa: o “Mercado”, cuja estrutura socioeconômica, psicossocial, cultural e política, segundo Toffler, extrapola em significado e importância a torrente de mercadorias e serviços que fluem através dele. O mercado, mesmo que não objetivasse o lucro, tornava-se fundamental para o funcionamento das sociedades industriais capitalistas e socialistas.

O livro tem o seu fio condutor na demonstração do paradigma fundamental da Segunda Onda: um modelo “gestado” pelo mercado, que tem como sujeitos o estado nação, os meios de comunicação de massa, a companhia, a família e a escola; que está tecnologicamente estruturado no aparato eletromecânico e nos combustíveis fósseis e que segue os princípios da padronização, sincronização, centralização, concentração, maximização e especialização.  Depois, o livro nos conduz por uma gradual desconstrução desse modelo através do desenvolvimento do conceito de “Terceira Onda”.

Neste processo, o autor destaca a “segmentação” como conceito-chave na sociedade pós-industrial da Terceira Onda, seja no que toca aos meios de comunicação, ao mercado de bens e serviços ou à produção cultural. Ele afirma que essa tendência à segmentação é, além de tudo, uma forma de afirmar a diversidade crescente de uma sociedade que, aos poucos, se “desmassifica”.

A civilização da Terceira Onda será menos “atrelada ao tempo da máquina”: no trabalho, a jornada padrão “das nove às cinco”, por exemplo, assim como os horários de lazer e consumo, tenderão a uma maior flexibilização. A companhia valorizará mais a versatilidade e a criatividade do que a pontualidade, prevê Toffler. O trabalho “em casa”, outra “aposta” do autor, vai exatamente nessa linha.

A Terceira Onda também arrasta consigo um novo conceito tecnológico: uma matriz energética mais diversificada, renovável e autossustentável (energia solar, eólica, de biomassa...) e um hardware mais sofisticado, apoiado na engenharia genética, no desenvolvimento da ciência dos materiais, na indústria espacial, na microeletrônica, na transferência de dados em alta velocidade, no computador... O incrível acesso à informação que temos hoje, juntamente com as mudanças culturais e comportamentais provocadas pelas redes sociais a partir da interatividade proporcionada pela tecnologia digital; as perspectivas vertiginosas que a automação e a inteligência artificial nos apresentam; a produção de sementes geneticamente modificadas e o desenvolvimento de novos materiais no espaço, por exemplo, são possibilidades, quando não explícitas, latentes na obra de Alvin Toffler.

Durante a leitura (que, apesar da complexidade do tema, é fácil graças à linguagem acessível e à boa tradução), mal nos damos conta de que estas questões - pensadas lá atrás quando o vídeo cassete ainda era um “sonho de consumo” e falávamos em “Guerra Fria” – ainda permanecem atuais.

No novo cenário da Terceira Onda - com maior pressão política sobre as questões ecológicas, morais, raciais, sexuais..., - a firma tornar-se uma instituição de múltiplos fins, diz Toffler: fins ambientais, sociais, informacionais, políticos e morais e não apenas econômicos. Além disso, adquire maior influência (e complexidade) ao se tornar “transnacional”, organizando sua produção através de diversas nações.

Embora considerada tipicamente uma invenção capitalista, o fato é que umas 50 ‘transnacionais socialistas’ operavam através dos países do COMECON [Council for Mutual Economic Assistance, fundado em 1949 e extinto em 1991, visava a integração econômica das nações do Leste Europeu] (p. 318).

Além das companhias "transnacionais”, a sociedade da Terceira Onda compreende outros novos atores como as “associações transnacionais não governamentais” (que incluem o que chamamos hoje de “ONGs”) e as “organizações intergovernamentais” (CEE, MERCOSUL, OPEP, NAFTA, etc.), por exemplo.

As nações são cada vez menos capazes de ação independente -estão perdendo muito de sua soberania [...]. O que estamos criando é um jogo global multi-estratificado no qual não só nações, mas também companhias e sindicatos profissionais, agrupamentos políticos, étnicos e culturais, associações transnacionais e agências supranacionais são todos figurantes (p. 321). [...] O globalismo apresenta-se como sendo mais do que uma ideologia que serve aos interesses de um grupo limitado. [...] Clama falar por todo o mundo (p. 322).

Também o lar, salienta o autor, assumirá uma nova e surpreendente importância, ressurgirá como uma unidade com funções econômicas, médicas, educacionais e sociais ampliadas em relação às desempenhadas na Segunda Onda onde, aliado à escola, deveria nos incutir apenas um "currículo encoberto" - obediência, pontualidade e resiliência - para que pudéssemos suportar o trabalho monótono, repetitivo e, muitas vezes, extremamente alienante.

Por fim, há que se sopesar o fato de que, mesmo para um indivíduo como Toffler, visionário e perspicaz, seria difícil prever com exatidão a magnitude dos potenciais avanços tecnológicos previstos por ele e o impacto desnorteante que eles poderiam causar sobre a vida das pessoas nos 40 anos seguintes. Para contextualizar o que eu digo, dez anos antes da primeira edição do livro, o homem havia recém pisado na lua (1969) e apenas três anos antes, Mr. Jobs & Cia haviam lançado o Apple II com 4KB de memória RAM e um processador de 1Mhz (1977).

Ciente de não ter abordado com a devida consideração alguns aspectos e de ter deixado fora outros tantos, pois o objetivo não é condensar a obra, citarei agora algumas questões que talvez rendessem um novo livro. Na maior parte, são questões que derivam do aprofundamento de alguns temas centrais: a solidão numa sociedade que rapidamente se desmassifica e o vácuo deixado pela destruição gradual de um modo de vida estruturado no industrialismo; a dificuldade de se obter consenso num sistema político anacrônico, sobrecarregado pela diversidade e a construção de um governo de maioria baseado no poder das minorias, são alguns exemplos.

Encerro este post transcrevendo mais um dos vários trechos do livro que atestam a atualidade pensamento de Alvin Toffler (1928-2016):

Pode-se vislumbrar nela [a sociedade da Terceira Onda] uma civilização que concede tolerância para a diferença individual e abraça (mais do que suprime) a variedade racial, regional, religiosa e cultural (p.353).