O de
Nietzsche (O Anticristo, Guimarães Editores, Lisboa, 1988) diz representar o ímpeto,
a integridade, o destemor e o amor-próprio -algo que lembra o seu Zaratustra.
O anticristo, segundo o autor, é também a antítese do cristão – “a enferma besta humana”.
Com um
estilo sanguíneo, Nietzsche quer destruir o cristianismo a marteladas e, para
isto, bate forte nos sacerdotes.
[...] o
padre tem na mão todas as grandes noções (-e não só na mão!), e lança-as com um
benévolo desprezo contra o ‘intelecto’, os ‘sentidos’, as ‘honras’, o
‘conforto’ [confronto?], a ‘ciência’; vê tais coisas ‘abaixo’ de si como forças
perniciosas e sedutoras, acima das quais o ‘espírito’ plana, numa abstração
pura [...] (parte VIII, p.21).
Sobre Jesus
diz o seguinte:
Esse santo
anarquista que chamava o povo mais baixo, os réprobos e ‘pecadores’, os
tchandala do judaísmo, à resistência contra a ordem estabelecida -com uma linguagem
que ainda hoje conduziria à Sibéria, a acreditar nos Evangelhos [...]. Isto
levou-o à cruz: prova-o a inscrição que sobre ela existia. Morreu por seus
pecados (parte XXVII, p. 56).
Jesus
acabou com a lógica judaica do pecado (pecado-arrependimento-perdão),
o instrumento de sujeição inventado pelo sacerdote judeu.
O ‘pecado’,
toda a relação de distância entre Deus e o homem, fica suprimido – ‘essa é a
boa nova’. [...] “O ‘arrependimento’, a ‘oração pela salvação’ não são caminhos
para Deus: ‘só a prática evangélica’ conduz a Deus; ela, justamente, é ‘Deus’!
(parte XXXIII, p. 66 e 67).
Mas, mais do que pela
trajetória ou pelos postulados da doutrina, Nietzsche se interessava pelo “tipo
psicológico” do Galileu: queria saber se ele era, de fato, um anarquista ou se apenas
foi confundido com um. Acreditava que o arauto da “boa nova” vivia num mundo
paralelo, num mundo interior onde a incapacidade de resistir ao mal (por não o
reconhecer) transformou-se em postulado, em religião; num mundo de paz onde o
amor é o único modo aceitável de vida. A “boa nova” nos diz que o “reino dos
céus é um estado da alma”, algo que se vive no coração, aqui e agora.
Todo o Evangelho está
contido nas palavras que sobre a cruz, ele dirige ao ladrão, ‘Em verdade este
era um homem divino, um filho de Deus -diz o ladrão! Se sentes isso -responde o
redentor- ‘então estás no paraíso’, és um filho de Deus (parte XXXV, p. 69)
NOTA: este diálogo, é claro,
conta, aqui, com a liberdade interpretativa do autor; a sua reprodução,
conforme as escrituras, pode ser vista em Lc. 23, 39-43.
Se Nietzsche não descarta a
possibilidade deste homem ter sido singularmente múltiplo e contraditório,
está, porém, praticamente convencido do contrário: existe uma distância muito
grande entre o pregador, “cuja silhueta é a de um Buda”, e o anarquista e
crítico daquela sociedade judaica de fariseus e doutores da lei. Aliás, como
conciliar o “vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34-35) com o homem
briguento que expulsa os vendedores do templo (Mt 21, 12-13) ou com o Cristo
vingador triunfante do Apocalipse, por exemplo?
Provavelmente, o tipo foi desfigurado e “enriquecido” posteriormente,
adaptado para que pudesse ser assimilado por aquelas primeiras comunidades
cristãs como o “Cristo Salvador”, acredita o autor.
Enfim, acho que se pode dizer
que, se Nietzsche considera a imortalidade da alma, o além e o juízo final
apenas instrumentos de poder inventados posteriormente, Jesus -o único e
verdadeiro cristão segundo ele-, por outro lado, conta com o seu respeito.
O livro
discorre também sobre vários outros temas correlatos: fala do judaísmo e da
lógica do pecado, da degenerescência moral do cristianismo, da superioridade da
cultura greco-romana, etc. Sobre a cultura greco-romana e o islamismo diz
o seguinte:
O
cristianismo fez-nos perder a herança da cultura antiga [grega e romana],
fez-nos perder mais tarde a herança da cultura do islamismo. A maravilhosa
civilização árabe de Espanha, mais próxima em suma dos nossos sentidos e dos
nossos gestos do que Roma e Grécia, essa civilização foi ‘espezinhada’ (não
digo por que pés); porquê? Porque devia a sua origem a instintos nobres, a
instintos de homem, porque afirmava a vida [...] (parte LX, p. 127)
Sobre o
socialismo:
A que eu
odeio mais entre a chusma destas fezes? À canalha socialista, aos apóstolos de
Tchandala, que minam no instinto o prazer, o contentamento do operário de
modesta existência, que tornam invejoso o operário, que lhe ensinam a
vingança... A injustiça não se encontra nunca nos direitos desiguais;
encontra-se na pretensão aos direitos “iguais”. (parte LVII, p. 120)
Pois bem, há outro aspecto
do livro que, embora seja apresentado em segundo plano, aparece de forma
implícita em toda a obra. É algo que não pode ser lido inadvertidamente; deve,
ao menos, ser contextualizado no meio intelectual, cultural e social europeu do
século XIX (e ainda assim ...!!!).
Em toda a sociedade sã,
distinguem-se três tipos psicológicos, que gravitam diferentemente, mas que se
acham reciprocamente submetidos [...]. A natureza, e ‘não’ Manú, é que separa
os homens da preponderância intelectual, os de preponderância muscular e de
temperamentos fortes e os que não se distinguem por preponderância alguma, os
terceiros, os medianos; os últimos constituem o maior número, os primeiros são
a elite (parte LVII, p. 117).
Sim,
Nietzsche defende um sistema de castas legitimado por uma espécie de práxis moral
consentida, consensual e mais:
A casta
superior, que é o ‘menor número’, sendo a mais perfeita, possui também os
direitos do menor número [...]. Unicamente os homens mais intelectuais têm
direitos à formosura, a aspiração ao belo, entre eles unicamente a bondade não
é fraqueza. [...] Nada lhes é menos permitido do que os modos feios, o olhar
pessimista, olhos desfigurados, nem ainda a indignação por causa do aspecto
geral das coisas. A indignação é prerrogativa do tchandala e igualmente o
pessimismo (parte LVII, p. 118).
Os quatro
últimos parágrafos, sozinhos, já renderiam outro livro e, talvez, até mais
polêmico.
Enfim, quanto
ao “Anticristo”, era o que eu queria mostrar... Quanto ao autor, pode-se dizer
que era um aristocrata com altivez moral no século XIX. Hoje, é considerado
um elitista racista, mesmo lido no contexto do século retrasado. Mas, como o
próprio Nietzsche escreveria mais tarde: “Uma coisa sou eu, outra são os meus
escritos” (Ecce Homo, parte 3, §1).