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sábado, 18 de maio de 2024

O Anticristo, o livro. Resenha

O Anticristo, foi uma criação da Igreja Cristã, uma espécie de epíteto que era lançado contra qualquer pessoa ou entidade que pudesse representar uma ameaça a sua hegemonia doutrinária ou a suas pretensões políticas.

O de Nietzsche (O Anticristo, Guimarães Editores, Lisboa, 1988) diz representar o ímpeto, a integridade, o destemor e o amor-próprio -algo que lembra o seu Zaratustra. O anticristo, segundo o autor, é também a antítese do cristão – “a enferma besta humana”.

Com um estilo sanguíneo, Nietzsche quer destruir o cristianismo a marteladas e, para isto, bate forte nos sacerdotes.

[...] o padre tem na mão todas as grandes noções (-e não só na mão!), e lança-as com um benévolo desprezo contra o ‘intelecto’, os ‘sentidos’, as ‘honras’, o ‘conforto’ [confronto?], a ‘ciência’; vê tais coisas ‘abaixo’ de si como forças perniciosas e sedutoras, acima das quais o ‘espírito’ plana, numa abstração pura [...] (parte VIII, p.21).

Sobre Jesus diz o seguinte:

Esse santo anarquista que chamava o povo mais baixo, os réprobos e ‘pecadores’, os tchandala do judaísmo, à resistência contra a ordem estabelecida -com uma linguagem que ainda hoje conduziria à Sibéria, a acreditar nos Evangelhos [...]. Isto levou-o à cruz: prova-o a inscrição que sobre ela existia. Morreu por seus pecados (parte XXVII, p. 56).

Jesus acabou com a lógica judaica do pecado (pecado-arrependimento-perdão), o instrumento de sujeição inventado pelo sacerdote judeu.

O ‘pecado’, toda a relação de distância entre Deus e o homem, fica suprimido – ‘essa é a boa nova’. [...] “O ‘arrependimento’, a ‘oração pela salvação’ não são caminhos para Deus: ‘só a prática evangélica’ conduz a Deus; ela, justamente, é ‘Deus’! (parte XXXIII, p. 66 e 67).

Mas, mais do que pela trajetória ou pelos postulados da doutrina, Nietzsche se interessava pelo “tipo psicológico” do Galileu: queria saber se ele era, de fato, um anarquista ou se apenas foi confundido com um. Acreditava que o arauto da “boa nova” vivia num mundo paralelo, num mundo interior onde a incapacidade de resistir ao mal (por não o reconhecer) transformou-se em postulado, em religião; num mundo de paz onde o amor é o único modo aceitável de vida. A “boa nova” nos diz que o “reino dos céus é um estado da alma”, algo que se vive no coração, aqui e agora.

Todo o Evangelho está contido nas palavras que sobre a cruz, ele dirige ao ladrão, ‘Em verdade este era um homem divino, um filho de Deus -diz o ladrão! Se sentes isso -responde o redentor- ‘então estás no paraíso’, és um filho de Deus (parte XXXV, p. 69)

NOTA: este diálogo, é claro, conta, aqui, com a liberdade interpretativa do autor; a sua reprodução, conforme as escrituras, pode ser vista em Lc. 23, 39-43.

Se Nietzsche não descarta a possibilidade deste homem ter sido singularmente múltiplo e contraditório, está, porém, praticamente convencido do contrário: existe uma distância muito grande entre o pregador, “cuja silhueta é a de um Buda”, e o anarquista e crítico daquela sociedade judaica de fariseus e doutores da lei. Aliás, como conciliar o “vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34-35) com o homem briguento que expulsa os vendedores do templo (Mt 21, 12-13) ou com o Cristo vingador triunfante do Apocalipse, por exemplo?  Provavelmente, o tipo foi desfigurado e “enriquecido” posteriormente, adaptado para que pudesse ser assimilado por aquelas primeiras comunidades cristãs como o “Cristo Salvador”, acredita o autor.

Enfim, acho que se pode dizer que, se Nietzsche considera a imortalidade da alma, o além e o juízo final apenas instrumentos de poder inventados posteriormente, Jesus -o único e verdadeiro cristão segundo ele-, por outro lado, conta com o seu respeito.

O livro discorre também sobre vários outros temas correlatos: fala do judaísmo e da lógica do pecado, da degenerescência moral do cristianismo, da superioridade da cultura greco-romana, etc. Sobre a cultura greco-romana e o islamismo diz o seguinte:

O cristianismo fez-nos perder a herança da cultura antiga [grega e romana], fez-nos perder mais tarde a herança da cultura do islamismo. A maravilhosa civilização árabe de Espanha, mais próxima em suma dos nossos sentidos e dos nossos gestos do que Roma e Grécia, essa civilização foi ‘espezinhada’ (não digo por que pés); porquê? Porque devia a sua origem a instintos nobres, a instintos de homem, porque afirmava a vida [...] (parte LX, p. 127)

Sobre o socialismo:

A que eu odeio mais entre a chusma destas fezes? À canalha socialista, aos apóstolos de Tchandala, que minam no instinto o prazer, o contentamento do operário de modesta existência, que tornam invejoso o operário, que lhe ensinam a vingança... A injustiça não se encontra nunca nos direitos desiguais; encontra-se na pretensão aos direitos “iguais”. (parte LVII, p. 120)

Pois bem, há outro aspecto do livro que, embora seja apresentado em segundo plano, aparece de forma implícita em toda a obra. É algo que não pode ser lido inadvertidamente; deve, ao menos, ser contextualizado no meio intelectual, cultural e social europeu do século XIX (e ainda assim ...!!!).

Em toda a sociedade sã, distinguem-se três tipos psicológicos, que gravitam diferentemente, mas que se acham reciprocamente submetidos [...]. A natureza, e ‘não’ Manú, é que separa os homens da preponderância intelectual, os de preponderância muscular e de temperamentos fortes e os que não se distinguem por preponderância alguma, os terceiros, os medianos; os últimos constituem o maior número, os primeiros são a elite (parte LVII, p. 117).

Sim, Nietzsche defende um sistema de castas legitimado por uma espécie de práxis moral consentida, consensual e mais:

A casta superior, que é o ‘menor número’, sendo a mais perfeita, possui também os direitos do menor número [...]. Unicamente os homens mais intelectuais têm direitos à formosura, a aspiração ao belo, entre eles unicamente a bondade não é fraqueza. [...] Nada lhes é menos permitido do que os modos feios, o olhar pessimista, olhos desfigurados, nem ainda a indignação por causa do aspecto geral das coisas. A indignação é prerrogativa do tchandala e igualmente o pessimismo (parte LVII, p. 118).

Os quatro últimos parágrafos, sozinhos, já renderiam outro livro e, talvez, até mais polêmico.

Enfim, quanto ao “Anticristo”, era o que eu queria mostrar... Quanto ao autor, pode-se dizer que era um aristocrata com altivez moral no século XIX. Hoje, é considerado um elitista racista, mesmo lido no contexto do século retrasado. Mas, como o próprio Nietzsche escreveria mais tarde: “Uma coisa sou eu, outra são os meus escritos” (Ecce Homo, parte 3, §1).