Visitas ao Blog

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O Caso Lula II. O "Mea Culpa" da Classe Média (Final)

A operação Lava Jato sempre teve toques de arbitrariedade, sensacionalismo midiático e diversas outras heterodoxias desde quando foi fundada em 2016. Mas, me parece que, enquanto as coisas iam ao encontro dos anseios de parte da sociedade brasileira, da sua parte mais influente, tudo ia bem. Isto fica bem claro quando se faz uma retrospectiva de 2022 até 2016.

Existem ritos processuais que devem ser cumpridos, existem garantias, prerrogativas, etc. Eu sei. Mas, a partir de 2021, os entendimentos do STF, com relação aos processos contra Lula, começaram a mudar de forma muito contundente, surpreendente até, como mostrei no post anterior. Hoje, a própria operação que esteve sob o juízo de Sérgio Moro está sob investigação (https://www.cnnbrasil.com.br/politica/stf-abre-inquerito-para-apurar-acusacoes-contra-moro-por-supostas-irregularidades-na-lava-jato/).

Já falei aqui, em posts anteriores, sobre o antipetismo, sobre a ascensão da extrema direita, do bolsonarismo, etc. Agora, quero escrever sobre como eu penso que tudo isto se encaixa com a improvável, quase impossível cinco anos antes, eleição de Lula para um terceiro mandato como presidente da república.

A procura por um outsider (ou por alguém “travestido” de) como Bolsonaro nas eleições de 2018 não é novidade, já passamos por isto antes com Jânio Quadros em 1961 e com Fernando Collor de Mello em 1989, também acompanhamos os casos de Trump nos EUA, Zelensky na Ucrânia, Meloni na Itália e Milei na Argentina mais recentemente, entre vários outros. O próprio Lula, lá na década de 80, -oriundo do movimento sindical com um discurso socialista que criticava a leniência do estado com a elite capitalista, o descaso com a miséria, a falta de oportunidades de ascensão para a classe trabalhadora, ... -apresentava-se como um outsider, embora fosse apoiado por um partido ideologicamente consistente e em franco crescimento.

NOTA: a definição de outsider que uso aqui não tem rigor conceitual, mas engloba algumas características que sempre são destacadas quando o termo é empregado na mídia. Assim, defino-o como aquele ator político que se mostra crítico do sistema ao qual, na verdade, pertence quase sempre. Ele, porém, tenta desvincular-se do estereótipo do político tradicional -carreirista, corrupto e “fisiologista” -, não é um novato necessariamente, mas está associado a partidos políticos pequenos e sem grande representatividade na maioria das vezes. Adota um discurso que agrada as grandes massas: anticorrupção, contra a ineficiência da máquina pública, moralmente conservador, liberal do ponto de vista econômico ou, às vezes ao contrário, crítico da lógica capitalista dependendo do contexto.

Bolsonaro ainda agregou ao perfil uma postura irreverente com uma linguagem simples e direta, “sem papas na língua”. Mostrava-se como um “homem do povo”: pedia “pingado com pão e manteiga” e, às vezes, até uma cerveja ou um “refri” no boteco; usava caneta Bic; gostava de pilotar motocicletas populares e era um tipo “machão”, sem muitos floreios e “finuras”; não gostava de “comunistas” e achava que todo o cidadão “de bem” tinha o direito de possuir uma arma de fogo. Além disto, era um “homem de fé” e um pai de família: caiu no gosto do povo.

Eu disse, “caiu no gosto do povo”, mas preciso fazer uma ressalva. O “povo” eleitor de Bolsonaro não está, necessariamente, entre os que têm fome ou passam por algum tipo grave de privação. Para os mais de 21 milhões de brasileiros que vivem em estado de “insegurança alimentar grave” (estado de fome), por exemplo, não importam a ideologia do governo, a sua política econômica ou as leis do Congresso, na verdade, não importa qualquer governo. Estes brasileiros sequer se acham capazes de reivindicar alguma coisa: não têm mais esperança, não creem mais, apenas aceitam o que lhes for dado.

O eleitor de Bolsonaro (ou de Lula) também não está concentrado no topo da pirâmide socioeconômica. Esta turma possui quase 80% do patrimônio privado do país, para estes 10% da população também não faz diferença, estão acima dos governos e usam o lobby como instrumento de poder, não o voto. Não estão preocupados com este ou aquele governo, “estão de olho” em movimentos mais amplos e perenes: estão mais atentos às mudanças no “pensar e agir” da sociedade.

Tanto a base quanto o topo votam, é claro, em quem mais lhe apetece, mas de forma dispersa, sem muita convicção e envolvimento.

Por outro lado, eu estimo que, entre a massa desesperançosa da base e a elite impassível do topo, existe uma “massa crítica” de, mais ou menos, 45 % da população brasileira, que se importa: esta parte da população brasileira faz doações para as campanhas eleitorais, assiste os debates, faz propaganda, constrói narrativas, influencia eleitores e, portanto, sabe que pode ter um papel decisivo no processo e quer fazer a diferença.

Esta massa crítica, que eu chamo genericamente de “classe média”, e que, quase sempre, têm um comportamento pendular -da “esquerda para a direita e vice versa” - nas suas escolhas políticas, está milimétricamente dividida atualmente no Brasil, o pleito de outubro de 2022 é prova disto.

Porém, a parte mais esclarecida desta classe média, que atua no meio político/público, na mídia, na produção cultural e até no meio empresarial, conseguiu, no derradeiro momento, vislumbrar o futuro sombrio que Bolsonaro nos oferecia para o seu segundo mandato. O que começou como um protesto contra a “cultura de esquerda” lá em 2016, corria o sério risco de terminar em tragédia. Então, estes cidadãos decidiram agir: tiraram o Lula da cadeia ainda a tempo de fazer alguma diferença.

Lula era a única alternativa naquele momento, não a melhor, a única com carisma e popularidade suficientes para desbancar Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de outubro 2022. Além disso, Lula tinha histórico, todos sabiam o que esperar, não haveria surpresas.

Bolsonaro, por sua vez, se mostrou um ser humano misógino e homofóbico, um presidente antissistema com viés voltado ao intervencionismo militar e índole belicosa. O seu comportamento negacionista durante a pandemia do COVID-19, o descaso criminoso com que tratou a nossa floresta amazônica e os povos originários que ali vivem e a imagem de um Brasil fechado para o mundo que ele fez questão de cultivar, justificaram o medo em boa parte da sociedade de uma provável, quase certa, reeleição.

Resumindo: Lula saiu da cadeia e chegou à presidência pela terceira vez graças à incompetência criminosa de Bolsonaro e da trupe que o acompanhava. A "elite esclarecida" da classe média, por sua vez, fez o seu mea culpa e salvou o país de uma catástrofe.