Às vezes, dizemos de forma taxativa e um pouco pretenciosa que certos eventos ou ideias nada mais são do que quimeras, fantasias ou fraudes e que, por isto, são também irrelevantes e não merecem a consideração da filosofia e da ciência.
Mas, o que devemos classificar como fantasia? Tudo aquilo
que, ao contrário dos princípios newtonianos, por exemplo, não se impõe como absoluto
ou inquestionável? Por tudo que sabemos da vida, podemos afirmar com
praticamente toda a certeza que “Papai Noel” é uma quimera: somos capazes, a
partir dos oito ou nove anos, de chegar a esta conclusão sozinhos pela simples
observação dos fatos, por mais relutantes que estejamos.
Por outro lado, há casos raros em que o significado dos
fatos observados simplesmente transcende a nossa sagacidade e não se encaixa no
quebra-cabeças da ciência. Isto não os tornará automaticamente irrelevantes nem obrigatoriamente fraudulentos e fantasiosos. Os fenômenos
mediúnicos genuínos, com todas as implicações existenciais que lhes são
correlatas, estão entre estes casos raros simplesmente porque ninguém conseguiu
descartá-los convincentemente, mesmo sendo o tema perturbador demais para ser posto
de lado.
Se conseguíssemos explicá-los ou, ao menos, empreender uma
tentativa séria, fosse qual fosse o resultado, poderíamos ratificar ou dar novo
significado a conceitos como vida, evolução, Deus, fé, destino e morte. Isto
mudaria tudo! De uma forma ou de outra, estaríamos diante de um novo divisor de
águas.
O certo é que estes fenômenos, sejam eles estudados no
contexto do espiritismo ou das relações mente-cérebro, precisam ser abordados
com base em dados observacionais consistentes e livres de preconceitos
dogmáticos como já dissemos no post anterior.
Neste contexto, porém, não se pode deixar de considerar os
interesses que determinam, na prática, onde serão alocados os recursos para as
pesquisas científicas. Quem paga a conta tem algum interesse político ou econômico
no resultado, embora os profissionais envolvidos nem sempre saibam qual a
origem exata dos recursos.
Marcelo Gulão Pimentel em sua dissertação de mestrado sobre
“O Método
de Allan Kardec para Investigação dos Fenômenos Mediúnicos” relata
que os debates e estudos realizados por Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail,
1804-1869) no século XIX, embora atraíssem interessados importantes como Alfred Russel Wallace (1823-1913) e a Society
for Psychical Research–SPR (Londres, 1882), acabaram relegados ao campo dos transtornos
mentais ou vinculados a fraudes: “[...]havia um grupo de pesquisadores
interessados em abordar estes fenômenos apenas sob um ponto de vista
materialista, que se tornou hegemônico.” (p. 6).
A SPR e Kardec -este último, figura bastante respeitada na
sociedade e no meio intelectual da França no século XIX- não contavam com o apoio das
instituições acadêmicas mais fortes da Europa e da América. Este apoio era
bloqueado por posicionamentos científicos contrários e influentes, sim, mas, na
minha opinião, também por sólidas barreiras institucionais.
Certamente, ao atribuir um
caráter divino às revelações espiritas, Kardec conferiu “ares místicos” aos
eventos mediúnicos, apesar de seus esforços no sentido contrário. Este “duplo
caráter”, divino/científico, espiritual/material, certamente não facilitou uma
maior aproximação com a comunidade cientifica que, como já se disse, é e sempre
foi predominantemente materialista. “O que caracteriza a revelação espirita é o
ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração
fruto do trabalho do homem.” (A Gênese, Cap. I, § 13)
Por outro lado, ao adentrar o
terreno do “divino”, o espiritismo diminuiu a importância da fé -a certeza
racional a substituiria. “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a
frente a razão [...].” (o Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XIX, § 6). Desta
forma, o previsível desconforto das religiões cristãs, que têm grande
penetração no meio acadêmico, também geraria pouca receptividade para qualquer
proposta de pesquisa na linha espirita. Aliás, vale lembrar que quatro das mais
importantes universidades do mundo -Cambridge, 1209; Oxford, 1096; Harvard,
1636 e Princeton, 1746-, que juntas contam com cerca de duzentos prêmios Nobel,
possuem forte influência cristã (principalmente protestante), seja no propósito
das suas respectivas fundações ou na cultura que molda seus princípios
institucionais.
Atualmente, além de tudo isto,
“os tempos mudaram”, temos que admitir. O historiador e professor Yuval Noah
Harari em seu best-seller “Sapiens-uma breve história da humanidade” (LP&M,
2020, p. 359, 360) diz o seguinte:
Tente imaginar o islamismo, o
cristianismo ou a antiga religião egípcia num mundo sem morte. Esses credos
ensinavam às pessoas que elas deviam acertar as contas com a morte e apostar
suas fichas na vida após a morte [...]. As mentes mais brilhantes estavam ocupadas
dando significado à morte, e não tentando fugir dela.
Hoje, as mentes mais
brilhantes preocupam-se mais com os processos do envelhecimento e com o
controle das doenças degenerativas. Estamos mais interessados no prolongamento da
vida e menos no que virá depois dela, diz Harari. Estamos nos tempos do “ceticismo
consumista”, do “aqui e agora”. A vida vale o contentamento que se pode
usufruir dela agora. Somos induzidos ao fazermos as nossas escolhas e as nossas opiniões são forjadas no caldeirão das mídias e tudo isto é orquestrado por
uma poderosa e sutil instituição chamada Mercado. Esta instituição, que transcende em importância e significado as mercadorias que fluem através dela, também não tem nenhum interesse no assunto atualmente.
Por fim, acredito que ainda reste
a pequena possibilidade de que financiadores abnegados e isentos, por
curiosidade, excentricidade ou puro altruísmo, banquem o estudo criterioso destes
fenômenos, seja no contexto do espiritismo ou das relações mente-cérebro. Porém,
até o momento, eles pouco se interessaram pelo tema.