Visitas ao Blog

sábado, 9 de julho de 2022

Entre Kardec e Darwin III (Final)

Às vezes, dizemos de forma taxativa e um pouco pretenciosa que certos eventos ou ideias nada mais são do que quimeras, fantasias ou fraudes e que, por isto, são também irrelevantes e não merecem a consideração da filosofia e da ciência.

Mas, o que devemos classificar como fantasia? Tudo aquilo que, ao contrário dos princípios newtonianos, por exemplo, não se impõe como absoluto ou inquestionável? Por tudo que sabemos da vida, podemos afirmar com praticamente toda a certeza que “Papai Noel” é uma quimera: somos capazes, a partir dos oito ou nove anos, de chegar a esta conclusão sozinhos pela simples observação dos fatos, por mais relutantes que estejamos.

Por outro lado, há casos raros em que o significado dos fatos observados simplesmente transcende a nossa sagacidade e não se encaixa no quebra-cabeças da ciência. Isto não os tornará automaticamente irrelevantes nem obrigatoriamente fraudulentos e fantasiosos. Os fenômenos mediúnicos genuínos, com todas as implicações existenciais que lhes são correlatas, estão entre estes casos raros simplesmente porque ninguém conseguiu descartá-los convincentemente, mesmo sendo o tema perturbador demais para ser posto de lado.

Se conseguíssemos explicá-los ou, ao menos, empreender uma tentativa séria, fosse qual fosse o resultado, poderíamos ratificar ou dar novo significado a conceitos como vida, evolução, Deus, fé, destino e morte. Isto mudaria tudo! De uma forma ou de outra, estaríamos diante de um novo divisor de águas.

O certo é que estes fenômenos, sejam eles estudados no contexto do espiritismo ou das relações mente-cérebro, precisam ser abordados com base em dados observacionais consistentes e livres de preconceitos dogmáticos como já dissemos no post anterior.

Neste contexto, porém, não se pode deixar de considerar os interesses que determinam, na prática, onde serão alocados os recursos para as pesquisas científicas. Quem paga a conta tem algum interesse político ou econômico no resultado, embora os profissionais envolvidos nem sempre saibam qual a origem exata dos recursos.

Marcelo Gulão Pimentel em sua dissertação de mestrado sobre “O Método de Allan Kardec para Investigação dos Fenômenos Mediúnicos” relata que os debates e estudos realizados por Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail, 1804-1869)  no século XIX, embora atraíssem interessados importantes como Alfred Russel Wallace (1823-1913) e a Society for Psychical ResearchSPR (Londres, 1882),  acabaram relegados ao campo dos transtornos mentais ou vinculados a fraudes: “[...]havia um grupo de pesquisadores interessados em abordar estes fenômenos apenas sob um ponto de vista materialista, que se tornou hegemônico.” (p. 6).

A SPR e Kardec -este último, figura bastante respeitada na sociedade e no meio intelectual da França no século XIX- não contavam com o apoio das instituições acadêmicas mais fortes da Europa e da América. Este apoio era bloqueado por posicionamentos científicos contrários e influentes, sim, mas, na minha opinião, também por sólidas barreiras institucionais.

Certamente, ao atribuir um caráter divino às revelações espiritas, Kardec conferiu “ares místicos” aos eventos mediúnicos, apesar de seus esforços no sentido contrário. Este “duplo caráter”, divino/científico, espiritual/material, certamente não facilitou uma maior aproximação com a comunidade cientifica que, como já se disse, é e sempre foi predominantemente materialista. “O que caracteriza a revelação espirita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.” (A Gênese, Cap. I, § 13)

Por outro lado, ao adentrar o terreno do “divino”, o espiritismo diminuiu a importância da fé -a certeza racional a substituiria. “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão [...].” (o Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XIX, § 6). Desta forma, o previsível desconforto das religiões cristãs, que têm grande penetração no meio acadêmico, também geraria pouca receptividade para qualquer proposta de pesquisa na linha espirita. Aliás, vale lembrar que quatro das mais importantes universidades do mundo -Cambridge, 1209; Oxford, 1096; Harvard, 1636 e Princeton, 1746-, que juntas contam com cerca de duzentos prêmios Nobel, possuem forte influência cristã (principalmente protestante), seja no propósito das suas respectivas fundações ou na cultura que molda seus princípios institucionais.

Atualmente, além de tudo isto, “os tempos mudaram”, temos que admitir. O historiador e professor Yuval Noah Harari em seu best-seller “Sapiens-uma breve história da humanidade” (LP&M, 2020, p. 359, 360) diz o seguinte:

Tente imaginar o islamismo, o cristianismo ou a antiga religião egípcia num mundo sem morte. Esses credos ensinavam às pessoas que elas deviam acertar as contas com a morte e apostar suas fichas na vida após a morte [...]. As mentes mais brilhantes estavam ocupadas dando significado à morte, e não tentando fugir dela.

Hoje, as mentes mais brilhantes preocupam-se mais com os processos do envelhecimento e com o controle das doenças degenerativas. Estamos mais interessados no prolongamento da vida e menos no que virá depois dela, diz Harari. Estamos nos tempos do “ceticismo consumista”, do “aqui e agora”. A vida vale o contentamento que se pode usufruir dela agora. Somos induzidos ao fazermos as nossas escolhas e as nossas opiniões são forjadas no caldeirão das mídias e tudo isto é orquestrado por uma poderosa e sutil instituição chamada Mercado. Esta instituição, que transcende em importância e significado as mercadorias que fluem através dela, também não tem nenhum interesse no assunto atualmente.

Por fim, acredito que ainda reste a pequena possibilidade de que financiadores abnegados e isentos, por curiosidade, excentricidade ou puro altruísmo, banquem o estudo criterioso destes fenômenos, seja no contexto do espiritismo ou das relações mente-cérebro. Porém, até o momento, eles pouco se interessaram pelo tema.