Hoje, quero falar a respeito de um andante, alguém que fugiu para a vida, fugiu para encontrar o seu tesouro, notoriedade, dinheiro, paixão ou, talvez, só a paz na solidão, não sei. Há sempre um anseio e um impulso, clareza, quase nunca. Às vezes, é mais pela caçada do que pela caça.
Este cara parecia ser um tipo introspectivo, mas confiante e determinado; foi-se, pelo que dizem, “sem eira nem beira” para o mundo lá pelos seus vinte e poucos anos, contam que andou pela Europa e que chegou lá no porão de um navio, mas pouco me falaram desta parte.
Aliás, algo interessante na história dos aventureiros é que temos a oportunidade, nós os românticos, de preencher deliciosamente algumas lacunas deixadas pelo caminho. Imaginamos situações inusitadas, lugares distantes, experiências que transcendem o quadrado do cotidiano.
Quanto a este aventureiro, sei que, maduro, regressou ao seu torrão e, “bandeirante”, embrenhou-se em rincões bravios por cerca de trinta anos. Neste período, também mascate, gostava de colecionar palavras (também inventava algumas) e anotar histórias estranhas.
Numa cadeira de roda a velha benfeitora dos pobres e humildes, com um olho vazado expurgando um pus amarelo, acena com um sorriso mais para esgar.
E a sucessão continuava, com os coxos, mancos, chagados, cotos, todos mostrando ostensivamente suas misérias físicas, para o gáudio dos expectadores.
As luzes se apagam, a multidão aplaude buliçosa e começa a se dispersar, alegre e extasiada com a macabra encenação.
Com os seus relatos curtos - “pequenas coisas sem valor”, “churumichalha” como dizia -, talvez quisesse apenas reproduzir o seu olhar solitário, contemplativo, andarilho.
Naquela noite abochornada de verão, a escuridão começava a diminuir com a chegada da lua. Na canoa apoitada no meio da baía, o pantaneiro puxou a linha do anzol e um peixe começou a se debater. Jogou na fieira no fundo da canoa, junto com os outros. O prateado das escamas faiscava no lusco fusco.
O Prelado romano havia recebido uma senha e esperava a vez de ser chamado para a consulta.
Examinava, estupefato, as pessoas: miseráveis a maioria, bem vestidas algumas, era para ele uma inusitada e dolorosa experiência.
Observando aquele povo sofredor, alguma coisa o fez estremecer intimamente, deixando-o angustiado.
[...] só agora, vendo essas pessoas esperançosas e aflitas, num lugar distante num país distante é que teve a completa apreensão do ministério acontecido há vinte séculos atrás, na longínqua Galileia.
Quem sabe!? Talvez escrevesse para si mesmo, apenas para arrematar a sua jornada e livrar-se da bagagem que carregava há tanto tempo.
Decidi, então, partir. Já satisfizera minha curiosidade.
À noite, quando a lua espraiaria sua alumiação sobre os campos, deixaria o lugar onde vivenciara a experiência mais extraordinária da minha vida.
Quando a lua enorme estava no ápice, peguei o alforge e saí. [...] Tomei o mesmo caminho pelo qual viera e fui andando.
Talvez não importe o motivo, afinal, o motivo sempre esmaece diante da preponderância do ato.
À memória de José Carmelino Macagnan,
aventureiro e autor
de Churumichalha, seleção de contos não publicados.