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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Fadas no Divã, o livro. Resenha

Diana e Mário definem a sua obra (Fadas no Divã, Artmed, 2006) como um “traçado inicial do crescimento de uma criança até a adolescência e seus contratempos”. Concomitantemente, dispõem-se a analisar diversas situações vividas na paternidade e na maternidade: papéis, frustações, expectativas, neuroses, fantasias, .... E os contos infantis, segundo eles, ofereceram excelentes oportunidades para ilustrar alguns conceitos.

Por outro lado, inspirados pelo trabalho de Bruno Bettelheim, sentem-se também instigados pelo...

[...] porquê de determinados contos terem se celebrizado, durado, permanecido com um núcleo comum tão preservado, sendo que não são necessariamente muito melhores do que outros (p.23).

Estes contos conteriam elementos específicos que interessariam à criança ouvir em certas fases do seu desenvolvimento, ajudando-as, assim, a organizar e entender sentimentos contraditórios. Não seriam apenas os componentes mais evidentes da estória -trama, personagens, costumes, cenário, etc.- que atrairiam esse interesse, mas algo mais subjetivo, talvez “subliminar”, que aflora através combinação desses componentes.

A ideia é ...

[...] que a eficácia atual dos contos folclóricos em nossa subjetividade não retire sua força necessariamente do que teria sido sua constelação de sentido inaugural, mas em sentidos outros que ela possa evocar no momento presente de sua narrativa (p. 177).

Se por um lado as estórias ilustram convincentemente certos dramas adultos ou infantis, por outro também podem acolher analogias, associações e comparações que geram sentidos descolados da própria estória e que fluem para muito longe, perdendo o contato com ela. Em determinados momentos, tenho a impressão de que os autores se deixam levar por este fluxo.

Numa dessas estórias, por exemplo, uma mulher grávida, muito desejosa de uma certa hortaliça, o raponço, força o marido a roubá-la do jardim de uma vizinha, uma bruxa muito malvada. Sendo surpreendido numa das incursões é obrigado -para salvar a própria vida e obter todo o raponço que a esposa necessitasse - a prometer a filha que nasceria à feiticeira. Nascida, a promessa é cumprida e a feiticeira batiza a menina de "Rapunzel" em alusão aos fatídicos raponços.

A análise perspicaz do conto explora toda a sua riqueza: as dificuldades da gravidez, o papel instrumental e apagado do pai, a possessividade materna, a descoberta do amor, etc. Porém, na minha opinião, um certo devaneio insinua-se nesta passagem:

Quem desaparece é o pai, pois ele abdica dessa filha por não poder satisfazer a sua mulher. Essa insatisfação se expressa pela exigência de mais raponços, num apetite insaciável que o deixa impotente. É como se a mulher [representando a “dualidade” mãe/bruxa madrasta] dissesse: já que não podes me satisfazer, a filha que virá será o meu objeto de satisfação (p.66).

As palavras “satisfação”, “insatisfação”, “apetite insaciável” e “impotente” nos sopram uma conotação sexual no drama vivido pelo casal. Se realmente for essa a intenção, seria quase como “torturar” o conto para que ele gere um sentido que não pode gerar. Penso que o pai, a mãe e o recurso dos raponços são meros coadjuvantes utilizados para introduzir e contextualizar de modo tragicômico, mas sem nada escondido nas “entrelinhas”, o drama vivido por Rapunzel sob o jugo da bruxa (ao menos considerando a maneira como o conto nos é apresentado hoje). Além disso, fica claro que o homem se esforça para “satisfazer” a sua mulher -e consegue: coloca em risco a própria vida e abre mão da filha para garantir à esposa toda a quantidade da hortaliça que ela desejasse.

Outro exemplo eu retiro de "Chapeuzinho Vermelho". Como é destacado por Diana e Mário, nas versões mais antigas do conto os aspectos eróticos da narrativa são bem evidentes. Concordo também que na versão mais recente tais aspectos, embora suavizados, ainda são perceptíveis.

[...] pode-se pensar que ela [a estória] seja alusiva ao potencial de sedução contido nas relações com os adultos [...] (p.59).

Também concordo. Porém, no seguinte trecho ...

Como o cão doméstico se presta para encarnar a fera de que necessitamos invocar em determinados momentos [...], o lobo é, em definitivo, essa versão selvagem do perigo doméstico [um perigo costumeiro nas grandes florestas, é verdade], uma prova de que o papai bonzinho que se tem em casa [novamente o pai] pode tornar-se uma figura ameaçadora e temível (p. 59).

O lobo é um perigo a que estão sujeitas todas as meninas que se aventuram fora dos limites do lar, pelos caminhos da floresta, e que conversam com estranhos -estranhos costumeiros, é verdade, mas em quem são orientadas a não confiar. É um predador astuto; é o que se espera encontrar na perigosa floresta. O pai, ao contrário, é um protetor, é o que se espera de quem habita no perímetro do lar. Não duvido que o protetor possa se transformar em predador, mas esta hipótese seria melhor extraída de outra estória, a do cão que atacou o dono, por exemplo.

Destaco ainda, na parte em que Mário e Diana falam das histórias contemporâneas, mais especificamente da "Turma da Mônica", as análises um pouco esquisitas sobre a personagem Floquinho (o cachorro do Cebolinha) e a sua capacidade de esconder qualquer coisa sob o seu pelo:

Floquinho é etéreo, mas não só isso, ele é uma espécie de buraco negro de baixa gravidade. [...] Ele parece uma porta para outra dimensão, uma dimensão interior mágica onde tudo cabe e o tamanho não é problema [p.209].

Ou seja, a vagina pode ser concebida como etérea, como o Floquinho, o qual, em sua parte visível, é coberto de pelos; assim como o órgão sexual feminino é um orifício com bordas peludas. Se a vagina é um buraco peludo, Floquinho é um peludo buraco [p.210].

Então, concluo que o Floquinho pode funcionar uma alegoria para o órgão sexual feminino: uma espécie de “buraco negro de baixa gravidade”, ou seja, “um buraco peludo” ou "um peludo buraco" “onde tudo cabe e o tamanho não é problema”. Achei bem esquisito!

Mais adiante, os autores advertem:

É fundamental que fique claro que ele não é exatamente uma representação do órgão feminino, apenas evoca algumas das suas possibilidades lógicas, considerando o pensamento infantil, é claro [p.210].

Embora eu considere as ressalvas que fiz bastante razoáveis, elas não desmerecem o livro de forma alguma. Gostei e recomendo iniciar a leitura do livro pelo capítulo XII (A Psicanálise dos Contos de Fadas) seguindo através das introduções das partes I (Histórias Clássicas) e II (Histórias Contemporâneas) até a conclusão (O Valor de uma Boa História). Depois, selecione as histórias que achar mais interessantes e leia as análises.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

As Enchentes do Rio Grande do Sul. Um resumo dos fatos

Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul (em azul, a Bacia da Lagoa dos Patos; em preto, a Bacia do Rio Uruguai) / Distribuição dos Municípios Mais Afetados no Estado.

Nota: as palavras ou expressões em itálico sinalizam "links" para as fontes consultadas pelo autor.

Tragédias ambientais como as que atingiram o Rio Grande do Sul em abril e maio de 2024 são cíclicas embora já se admita a influência das "mudanças climáticas" na periodicidade destes eventos. De 1839 para cá, contam-se umas dez, pelo menos, com destaque para as de 1873, 1941 (esta, mais concentrada na capital) e setembro/novembro de 2023 . A de 2024 foi a pior de todas, principalmente pela sua  abrangência, mas também pela concentração de grandes volumes de chuva num período curto de tempo.

UOL: “Em dez dias, o Rio Grande do Sul registrou o equivalente a três meses de chuva. Ao todo, foram 420 milímetros de precipitação entre os dias 24 de abril a 4 de maio, de acordo com o governo do Estado” 

Para se ter uma ideia com base nos últimos 30 anos, as médias históricas para os meses de abril e maio em Porto Alegre são, respectivamente, 108 mm e 111 mm. Apenas em maio deste ano, a capital gaúcha recebeu mais de 539,69 mm de chuva.

METSUL: [Em Porto Alegre] “... os meses mais chuvosos de série inteira são maio de 2024 (parcial) com 539,69 mm; setembro de 2023 com 447,3 mm; maio de 1941 com 405,5 mm; junho de 1944 com 403,6 mm; abril de 1941 com 386,6 mm; e junho de 1982 com 365,6 mm”.

O Lago Guaíba em Porto Alegre recebe as águas de quatro afluentes, são os rios Jacuí, dos Sinos, Caí e Gravataí. Somente o Rio Jacuí, encorpado pelos rios Pardo, Taquari e Vacacaí, é responsável por 85% do volume despejado no lago. Além de inundarem os respectivos vales no interior do estado (no caso dos rios Pardo, Taquari, Caí e Paranhana) e várias cidades da região metropolitana de Porto Alegre (rios Jacuí, dos Sinos e Gravataí), os afluentes do Guaíba contribuíram também para o alagamento de boa parte da capital gaúcha nas regiões das ilhas, central e norte. E não era para menos: o Guaíba atingiu a cota de 5,35 metros acima do nível do mar nesta última enchente, marca bem superior às de 3,5 m de 1873 e 4,75 m de 1941.

Em Porto Alegre e arredores, há que se considerar também a existência de 27 sub bacias hidrográficas cujos arroios principais desaguam no Lago Guaíba (21), no Rio Gravataí (4) e no Delta do Jacuí (1). Desses, apenas o Arroio Areia na zona norte da capital recebeu estruturas de macrodrenagem. O Arroio Feijó, que inundou bairros do município de Alvorada, por exemplo, espera por obras de macrodrenagem a mais de uma década. Os recursos para as obras nesse arroio foram inclusive abarcados pelo PAC de 2012, mas o Governo do Estado nunca tirou o projeto do papel.

Na região metropolitana, incluindo o bairro Sarandi na zona norte de Porto Alegre, as cidades de Cachoeirinha, Gravataí e Alvorada foram mais atingidas pelo Rio Gravataí, enquanto em São Leopoldo, Sapucaia do Sul e Esteio, o maior impacto foi causado pelo Rio dos Sinos. Em Eldorado do Sul, município com aproximadamente 40.000 habitantes, o conjunto Jacuí/Guaíba alagou mais de 80% da cidade. O município de Canoas, com mais de 180.000 habitantes, um dos mais afetados no estado (juntamente com Eldorado do Sul e São Leopoldo), foi atingido pelos rios Jacuí, Sinos e Gravataí simultaneamente e teve em torno de 50% do seu território alagado. Apenas em Canoas, tivemos 31 óbitos. No total da região metropolitana, foram 48.

Nos vales banhados pelo rio Taquari, as cidades de Roca Sales e Cruzeiro do Sul lamentaram 27 mortes. O município de Muçum, com mais de 4.600 habitantes, teve de 66% da área devastada. Já a região serrana do estado, se sofreu menos com os alagamentos, foi mais devastada pelos deslizamentos de terra, que bloquearam estradas, desabrigaram famílias e fizeram 41 vítimas fatais.

Das três principais bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul, a mais sobrecarregada pelas chuvas de abril/maio foi a da Lagoa dos Patos (em roxo/azul na figura acima). A lagoa, que recebe as águas do Guaíba, do Rio Camaquã e do Canal de São Gonçalo (que faz a ligação entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim), é responsável por escoar todo este volume para Oceano Atlântico através do Canal da Barra do Rio Grande. A vazão medida no canal no dia 10 de maio de 2024 chegou a 20 mil metros cúbicos por segundo, aproximadamente oito vezes mais do que nos períodos normais de cheia da lagoa (Zero Hora, 23/5/24). A direção dos ventos e o movimento das marés regulam este escoamento.

Durante as enchentes, a maré cheia e o vento sul represavam periodicamente as águas da lagoa e provocavam alagamentos em cidades como Pelotas e São José do Norte no extremo sul do estado. Além deste represamento, a região contou também com um considerável incremento nas chuvas. Estes problemas de escoamento na Lagoa dos Patos acabaram também por retardar o recuo das águas no Guaíba.

Na figura acima, podemos observar que a maior parte das cidades atingidas se concentra na região central do estado, mas vai se espalhando também para leste e oeste. Os casos mais esparsos ocorreram no sul e principalmente no norte do estado. No oeste, os municípios Cacequi, Alegrete, Uruguaiana e Quaraí foram afetados por rios que compõe a bacia do Rio Uruguai (em preto na figura acima). São os rios Ibicuí, Ibirapuitã (afluente do Ibicuí), Uruguai e Quaraí. Todavia, é a região abrangida pela bacia da Lagoa dos Patos que concentra a maior parte dos municípios atingidos pelas cheias.

No boletim da Defesa Civil/RS atualizado em 08/07/24 consta que 2.398.255 pessoas distribuídas em 478 municípios foram afetadas. Até esta data, foram registrados 182 óbitos e 31 pessoas desaparecidas. Há um mês apenas (9 de junho), a Defesa Civil anotava ainda 18.854 pessoas vivendo em abrigos -no auge das cheias foram mais de 70.000.


Ainda estão sendo estimados os prejuízos econômicos no Rio Grande do Sul, mas, considerando os dados levantados pela Defesa Civil em pouco mais de 30% dos municípios atingidos, as perdas já chegaram a mais 12 bilhões de reais conforme nota publicada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) no dia 14 de junho.

O interessante artigo da BBC "O que causou a enchente de 1941 em Porto Alegre — e por que ela não é argumento para negar mudanças climáticas" questiona a tese de que as enchentes no sul do país são cíclicas e dependentes apenas da intensidade de um fenômeno natural, o El Niño. Argumenta-se no artigo que esta tese é usada para enfraquecer as análises que apontam o aquecimento global provocado pelo homem como o causador destes eventos extremos, tão fortes e cada vez mais frequentes.