Por mais que a primeira sensação nos satisfaça, desperte
imediatamente em nós boas lembranças e nos encharque de prazer ou admiração, às vezes,
uma vivência mais profunda ou algo que apenas intuímos, também se revela.
A paisagem mais deslumbrante que conheço, por exemplo,
encontra-se em Paris e só pode ser vista à noite com a Torre Eiffel iluminada. A elegância da velha torre contrasta lindamente com a escuridão do Campo de Marte e tamanha é a beleza da cena que me parece impossível descreve-la com inteireza.
Todavia, foi na cidade de Lisboa, às margens do Tejo, que tive
um dos meus olhares mais inspiradores. De um mirante no alto do “Padrão dos
Descobrimentos”, eu contemplava o estuário do rio e a magnífica vista dos arredores. Então,
ao direcionar o olhar para a sua foz, a poucos quilômetros dali, um
sentimento delicado de reverência e ancestralidade me fez esquecer da paisagem
por alguns momentos: a imponência do Tejo no seu encontro com o oceano me fez
pensar na história do povo que por ele navegava e no modo com que esta história, a partir dele, se unia à minha.
Anos depois, um trecho do poema “O Tejo É Mais Belo Que O
Rio Que Corre Pela Minha Aldeia” de Fernando Pessoa resumiu com inspiração a ideia que tentei desenvolver nas linhas acima.
“... O Tejo tem grandes navios/ E navega nele ainda, / Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, / A memória das naus.../ Pelo Tejo vai-se para o Mundo. / Para além do Tejo há a América/ E a fortuna daqueles que a encontram. / Ninguém nunca pensou no que há para além/ Do rio da minha aldeia/ O rio da minha aldeia não faz pensar em nada...”
Quem leu “No Caminho de Swann” de Marcel Proust vai
lembrar do trecho abaixo, que, aliás, integra uma das passagens mais famosas da
literatura:
Mas no mesmo instante em que aquele gole, de
envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que
se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado,
sem noção da sua causa [...]. Cessava de me sentir medíocre, contingente,
mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada
ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser
da mesma natureza. [...]
Naquele momento, o sabor do chá e do bolo fez um sentimento de felicidade ligado a lembranças esquecidas no fundo da memória emergir através de toneladas de reminiscências. Quem nunca experimentou algo semelhante ...!?
NOTA: o autor poderia ter usado o aroma de
qualquer perfume da tia Leôncia ao invés do sabor do chá e do bolo, extrairia
de lá impressões justificadamente mais complexas, porém, optou por algo menos
óbvio e até mais encantador.
Para terminar, faço das palavras do personagem de Proust uma espécie de conclusão:
Mas quando mais nada subsistisse de um passado
remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas [...] o odor e o
sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando,
esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula
impalpável, o edifício imenso da recordação.