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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Memórias Afetivas VII. Der Grund, warum ich Deutsch lernen will

Quase todas as necessidades de uso de uma língua estrangeira serão bem atendidas se dominarmos o idioma inglês. Se você precisar ler as grandes obras da literatura ou das ciências, por exemplo, escritas em mandarim, alemão, russo, francês, português ..., mas as conversões para a sua língua materna não estão à altura das obras, procure no inglês, provavelmente encontrará uma tradução honesta e acessível.

Porém, quando a sonoridade do italiano ou do francês nos encanta, ou a reverência pelo legado ancestral do grego e do latim ou ainda a simples vontade de ler certos clássicos no original se impõem ―muitas são as necessidades do espírito―, devemos nos dedicar ao aprendizado de uma segunda língua estrangeira. Para todo o resto teremos o inglês.

No meu caso, existe uma intimidade afetiva com o idioma alemão, ele permeia muitas das minhas memórias, principalmente as ligadas à infância. Cresci ouvindo essa língua nos diversos círculos familiares que meus pais, tios e avós frequentavam. Eu observava as reações, os gestos e fazia associações; com o tempo as palavras se repetiam (o vocabulário não era muito extenso) e, aos poucos, começavam a fazer sentido. Digo com muita convicção que aquele alemão, ouvido desde a infância, era quase tão familiar quanto o português.

Naqueles grupos, a maior parte das pessoas ―filhos, netos e bisnetos de brasileiros― se expressava com muita naturalidade em um alemão antigo[1], de vocabulário limitado, herdado dos ancestrais que aqui chegaram entre os meados e o final do século XIX.

Com o tempo, naquele meio, passei a preferir a língua alemã para escutar pequenas histórias ou gracejos, pois as traduções que me eram oferecidas uma vez ou outra não tinham a mesma graça, e o português daquelas pessoas era mal falado muitas vezes, tinha erros grosseiros (de gênero, a maioria) e uma pronúncia que confundia os sons do “p” e do “b”. Aquele português peculiar e com sotaque “engraçado” é, ainda hoje, uma característica das regiões de colonização alemã (e italiana) aqui no Sul do Brasil.

Apesar da familiaridade, nunca consegui dominar o idioma alemão; considero-me hoje, no máximo, um iniciante com uma pronuncia razoável. E há neste fato uma questão cultural importante que, aliás, tornou-se o principal objetivo deste post.

Desde o início da colonização, nas comunidades de imigrantes alemães (tanto evangélicas quanto católicas) aqui no Rio Grande do Sul, estabeleceram-se escolas comunitárias onde a língua predominante era o alemão. A partir da “Era Vargas” (1930-1945), no âmbito de um processo de afirmação da identidade nacional através da valorização da nossa história, geografia e costumes, tornou-se obrigatório o ensino da língua portuguesa. Na colônia, como se dizia, a maior parte das crianças chegava até a escola falando o português com muita dificuldade ou, às vezes, não falando. Durante boa parte da II Guerra Mundial (1940-1945), o dialeto alemão (e o italiano também) passou a ser proibido, não podia ser falado em nenhum evento público de caráter social, cultural ou religioso. Nas igrejas, muitos colonos alemães eram obrigados a ouvir a pregação em uma língua que não compreendiam.

Na medida em que o processo de urbanização[2] daquelas pequenas vilas de cultura germânica ia se desenvolvendo lá nas décadas de 1960 e 1970, a língua portuguesa deixou de ser uma imposição e virou uma necessidade. As gerações mais novas, nascidas nos meados do século XX, se davam conta de que o Hunsrückisch (chamado de “Plattdeutsch”, ou baixo alemão) era um pouco diferente do alemão bem falado, o “Hochdeutsch” (ou alto alemão). Tinham vergonha tanto do alemão “errado”[3] que falavam quanto do português que não dominavam.

Naquele tempo, já residíamos em Porto Alegre e a minha mãe[4], que ainda lidava com algumas dificuldades para expressar-se em português, talvez visse a língua alemã não como um legado que devesse transmitir aos filhos, mas como um complicador na nossa educação ―provavelmente pensando na própria trajetória.

Resta que é difícil explicar a conexão afetiva que tenho com a língua alemã. É, talvez, como a experiência de reencontrar, depois de décadas, uma pessoa que foi muito próxima e que, hoje, é um importante cidadão do mundo, mas cuja figura ainda é familiar e traz de volta  reminiscências da infância feliz.



[1] Esse alemão antigo, conhecido como Hunsrückisch, é um dialeto trazido pelos imigrantes alemães principalmente para o sul Brasil. Ele se originou na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e chegou ao Brasil há mais de 180 anos. Atualmente, é considerado uma língua em contato com o português, o que resulta em influências mútuas. Estima-se que mais de um milhão de brasileiros ainda falem o Hunsrückisch em estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo. 

[2] Eletrificação, saneamento e integração com os grandes centros através do rádio e da televisão

[3] “Que alemanizava”, inclusive, algumas palavras do português que não conheciam no alemão: Television, ao invés de Fernseher; Zweirad oder Biciclet, ao invés de Fahrrad; Caminhon oder Lastzug, ao invés de Lastwagen ou LKW; Luftschiff, ao invés de Luftzeug, por exemplo.

[4] Muito prática e objetiva, na época, valorava as coisas pela utilidade que enxergava nelas, muito mais do que pela beleza, tradição ou quaisquer outras qualidades intangíveis.