Quase todas as necessidades de uso de
uma língua estrangeira serão bem atendidas se dominarmos o idioma inglês. Se você precisar
ler as grandes obras da literatura ou das ciências, por exemplo, escritas em
mandarim, alemão, russo, francês, português ..., mas as conversões para a sua
língua materna não estão à altura das obras, procure no inglês, provavelmente
encontrará uma tradução honesta e acessível.
Porém,
quando a sonoridade do italiano ou do francês nos encanta, ou a reverência pelo
legado ancestral do grego e do latim ou ainda a simples vontade de ler certos
clássicos no original se impõem ―muitas são as necessidades do espírito―, devemos
nos dedicar ao aprendizado de uma segunda língua estrangeira. Para todo o resto
teremos o inglês.
No
meu caso, existe uma intimidade afetiva com o idioma alemão, ele permeia muitas
das minhas memórias, principalmente as ligadas à infância. Cresci ouvindo essa
língua nos diversos círculos familiares que meus pais, tios e avós frequentavam.
Eu observava as reações, os gestos e fazia associações; com o tempo as palavras
se repetiam (o vocabulário não era muito extenso) e, aos poucos, começavam a
fazer sentido. Digo com muita convicção que aquele alemão, ouvido desde a infância,
era quase tão familiar quanto o português.
Naqueles
grupos, a maior parte das pessoas ―filhos, netos e bisnetos de brasileiros― se
expressava com muita naturalidade em um alemão antigo[1],
de vocabulário limitado, herdado dos ancestrais que aqui chegaram entre os
meados e o final do século XIX.
Com
o tempo, naquele meio, passei a preferir a língua alemã para escutar pequenas histórias
ou gracejos, pois as traduções que me eram oferecidas uma vez ou outra não
tinham a mesma graça, e o português daquelas pessoas era mal falado
muitas vezes, tinha erros grosseiros (de gênero, a maioria) e uma pronúncia que
confundia os sons do “p” e do “b”. Aquele português peculiar e com sotaque “engraçado”
é, ainda hoje, uma característica das regiões de colonização alemã (e italiana)
aqui no Sul do Brasil.
Apesar
da familiaridade, nunca consegui dominar o idioma alemão; considero-me hoje, no
máximo, um iniciante com uma pronuncia razoável. E há neste fato uma questão
cultural importante que, aliás, tornou-se o principal objetivo deste
post.
Desde o início da colonização, nas comunidades de imigrantes alemães (tanto evangélicas quanto católicas) aqui
no Rio Grande do Sul, estabeleceram-se escolas comunitárias onde a língua predominante
era o alemão. A partir da “Era Vargas” (1930-1945), no âmbito de um processo de
afirmação da identidade nacional através da valorização da nossa história,
geografia e costumes, tornou-se obrigatório o ensino da língua portuguesa. Na colônia, como se dizia, a maior
parte das crianças chegava até a escola falando o português com muita
dificuldade ou, às vezes, não falando. Durante boa parte da II Guerra Mundial
(1940-1945), o dialeto alemão (e o italiano também) passou a ser proibido, não
podia ser falado em nenhum evento público de caráter social, cultural ou
religioso. Nas igrejas, muitos colonos alemães eram obrigados a ouvir a
pregação em uma língua que não compreendiam.
Na
medida em que o processo de urbanização[2]
daquelas pequenas vilas de cultura germânica ia se desenvolvendo lá nas décadas
de 1960 e 1970, a língua portuguesa deixou de ser uma imposição e virou uma
necessidade. As gerações mais novas, nascidas nos meados do século XX, se davam
conta de que o Hunsrückisch (chamado de “Plattdeutsch”, ou baixo
alemão) era um pouco diferente do alemão bem falado, o “Hochdeutsch” (ou
alto alemão). Tinham vergonha tanto do alemão “errado”[3]
que falavam quanto do português que não dominavam.
Naquele
tempo, já residíamos em Porto Alegre e a minha mãe[4],
que ainda lidava com algumas dificuldades para expressar-se em português, talvez
visse a língua alemã não como um legado que devesse transmitir aos filhos, mas
como um complicador na nossa educação ―provavelmente pensando na própria
trajetória.
Resta
que é difícil explicar a conexão afetiva que tenho com a língua alemã. É, talvez, como a experiência de reencontrar, depois de
décadas, uma pessoa que foi muito próxima e que, hoje, é um importante cidadão do mundo, mas cuja figura ainda é familiar e traz de volta reminiscências
da infância feliz.
[1] Esse
alemão antigo, conhecido como Hunsrückisch,
é um dialeto trazido pelos imigrantes alemães principalmente para o sul
Brasil. Ele se originou na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e
chegou ao Brasil há mais de 180 anos. Atualmente, é considerado uma língua
em contato com o português, o que resulta em influências mútuas. Estima-se
que mais de um milhão de brasileiros ainda falem o Hunsrückisch em estados como
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo.
[2] Eletrificação, saneamento e
integração com os grandes centros através do rádio e da televisão
[3] “Que alemanizava”, inclusive, algumas
palavras do português que não conheciam no alemão: Television, ao
invés de Fernseher; Zweirad oder Biciclet, ao invés de Fahrrad; Caminhon oder
Lastzug, ao invés de Lastwagen ou LKW; Luftschiff, ao invés de Luftzeug, por exemplo.
[4] Muito prática e objetiva, na época, valorava as coisas pela utilidade que enxergava nelas, muito mais
do que pela beleza, tradição ou quaisquer outras qualidades intangíveis.