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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Sobre a velhice e a morte: A Máquina de Fazer Espanhóis, o livro. Resenha

Recomendo começar a leitura desta edição (Biblioteca Azul, 2016) pelo prefácio do Velosão, que destaca -e o faz muito bem- aspectos relevantes da obra. Destaca, por exemplo, a forma peculiar com que Mãe escreve, banindo as maiúsculas do texto e deixando exclamações e interrogações à interpretação do leitor. Fala também sobre as referências do livro à história política e social de Portugal, que permeiam toda a história -da opressão política da ditadura de Salazar nos anos 70 ao sentimento de estranheza dos portugueses no seio da atual Comunidade Europeia-, tudo isto dentro de uma “fábula de amor sincero e melancolia histórica (e biológica) que move este livro”, diz Caetano.

Após a morte da esposa, o personagem principal, António Jorge da Silva, é colocado pelos filhos em uma casa de repouso. Tolhido de decidir sobre a própria vida e extremamente inconformado com a perda da companheira de quarenta e oito anos de casamento, António chega ao “Lar da Feliz Idade” casmurro e agressivo. Aos oitenta e poucos anos, a desilusão com a vida e o vislumbre da implacável decrepitude da velhice o fazem desejar a morte como uma forma de justiça a livrá-lo de um legado humilhante.

Com o tempo, o sr. Silva (assim António era chamado no asilo) vai se amansando, faz algumas amizades interessantes, acostuma-se à rotina, empreende algumas traquinadas com seus companheiros de Feliz Idade e, nisto tudo, descobre até alguns deleites. As saudades da esposa Laura não passam, mas a revolta dá lugar, gradualmente, à melancolia e à fria constatação de que a vida vai mesmo se esfarelando dia após dia. Sobre isto, na página 139, o seu amigo Esteves diz o seguinte:


digam-me se não é a violência na terceira idade. isto é violência na terceira idade. sabem por quê, porque o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura. [...] ser-se velho é viver contra o corpo.

Neste compasso, António segue remoendo a sua existência e as suas escolhas, anotando culpas e desculpas; aos poucos, vai se enternecendo e também se fragilizando. Assim, segue até o fim da história.

Com muita “metafísica” e um senso de humor afiado e direto, Mãe nos declama a sua poesia da vida e faz com que nos aninhemos nesta história até quase esquecermos da desgraça que é envelhecer, até normalizarmos e acharmos razoavelmente aprazível aquela realidade triste. Mãe também coloca na boca dos seus personagens um tom de desgosto e decepção consigo mesmos, como povo, ao refletirem sobre o seu passado fascista nos tempos de Salazar. É, ainda, forte o sentimento de inferioridade, percebe-se que eles se sentem como se fossem filhos alongados, adotados pelo primeiro mundo, mas obrigados a viver num país de terceiro mundo, invejando o vizinho espanhol -as suas casas, os seus salários e o seu território mais imponente.

O livro não quer falar da descoberta de “[...] uma nova possibilidade de existência. Como a flor que fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio [...]", como se lê na contracapa desta edição. O livro diz mais sobre o encontrar aliviado de outra mão trêmula no meio da escuridão fria, sobre o alento que é descobrir-se acompanhado e amparado na beira do abismo. O autor não fala de esperança, fala de angústia, finitude e consolo.

Quanto ao estilo de Valter Hugo Mãe escrever (estilo inaugurado por José Saramago), devo dizer que, a mim, não trouxe acréscimos quanto à fluência do texto, tão propalada por Caetano Veloso no seu prefácio, ao contrário. Eu gosto mesmo é de ser interrompido por um novo parágrafo que, de preferência, comece com uma letra maiúscula; gosto de ver travessões nos diálogos e sinais de exclamação e interrogação dando “entonação” a eles. Algumas vezes tive que voltar linhas atrás para entender quem estava falando e se estava perguntando ou simplesmente afirmando, mas acabei me acostumando. De resto, o livro é ótimo!